O sistema de arbitragem proposto para a ALCA foi substancialmente fundado naquele em existência na Organização Mundial do Comércio (OMC) desde 1995, com desastrosos resultados para a prestação jurisdicional do direito do comércio internacional, bem como para os países em desenvolvimento, suas maiores vítimas[1] . Já em 1998, quando deveria ter havido uma revisão do procedimento, já eram evidentes os vícios sistêmicos e falhas operacionais do sistema de resolução de disputas da OMC, em sua grande maioria [2] . Nos países em desenvolvimento, já havia na ocasião um consenso de que o sistema de resolução de disputas da OMC era desastroso para os seus interesses, excepcionando-se alguns tanto disparatados como isolados comentários, como aqueles de Celso Lafer que, escrevendo em língua portuguesa, chamou-o de uma “success story”[3] (sic) .

A verdade é que, por ocasião da Rodada Doha da OMC, muitos países apresentaram propostas para a reforma do sistema de resolução de disputas da OMC, incluindo a Austrália, o Brasil, o Canadá, o Chile, a China, a Coréia do Sul, o Equador, os EUA, a Índia, Taiwan, a Tailândia, a União Européia (EU), e dois grupos de países, um da África, e outro de países menos desenvolvidos. As propostas de reforma apresentadas compreendem modificações substanciais a todos os 24 artigos e 4 anexos ao Entendimento sobre Resolução de Disputas (ERD) da OMC! A reforma tornou-se a reconstrução de um sistema profunda e inexoravelmente comprometido por seus muitos vícios e defeitos, que causaram sua completa desmoralização[4] .

As áreas em que reformas foram propostas para o ERD são basicamente 7:

i) Consultas;
ii) Formação e regras processuais dos painéis de primeira instância;
iii) Regras processuais de segunda instância;
iv) Execução;
v) Jurisprudência “stare decisis”;
vi) Regras especiais para países em desenvolvimento; e
vii) Novo tratamento para terceiros e “amicus curiae”.

Pois bem, o sistema de arbitragem proposto para a ALCA incorpora praticamente a totalidade dos vícios daquele da OMC, sem levar em consideração o processo de reforma presentemente em andamento. Mais ainda, a minuta do acordo da ALCA[5] coloca este acima daquele da OMC. Redigido em linguagem não jurídica, o que também é um grave problema do ERD, o capítulo de arbitragem do acordo da ALCA (capítulo de arbitragem) dá como jurisdição, denominada “escopo de aplicação” [6] (sic), a resolução de todas disputas entre as partes com relação à interpretação, aplicação (sic) ou não observância do acordo da ALCA. O recurso ao vocabulário laico, agravado pelos vícios dos matizes diplomáticos, tende a ofuscar o direito ao invés de fazê-lo eminentemente claro e facilmente inteligível. Por sua vez, o direito de ação é restrito aos Estados signatários [7] , sendo expressamente vedado o direito da ação a pessoas físicas ou jurídicas de direito privado[8] .

O artigo 4 do capítulo de arbitragem manda aplicar às disputas os princípios de direito internacional, bem como aqueles de boa fé, confidencialidade, celeridade, economia processual, acesso efetivo, tratamento especial e diferencial, bem como um equilíbrio entre direitos e obrigações das partes. O que vem a ser objeto do “tratamento diferencial” a países em desenvolvimento[9] é definido da seguinte forma “medidas como” (sic) maiores prazos; direito a assistência jurídica; e garantia de poder comunicar em quaisquer das línguas da ALCA (sic). Tais medidas de tratamento especial e diferenciado aos países em desenvolvimento são modestas e insuficientes para assegurar a eqüidade no sistema de arbitragem da ALCA. Por sua vez, a confidencialidade é assegurada a todos os documentos apresentados pelas partes, à exceção do laudo final e das notificações efetuadas[10] ao Secretariado. De maneira escandalosa, todavia, o artigo 23 do capitulo de arbitragem subordina as regras de direito internacional ao disposto no tratado da ALCA. Assim, havendo um conflito entre o tratado da ALCA e qualquer outra regra de direito internacional, prevalecerá aquele, o que representa um risco de enormes proporções e uma derrogação de todo um ordenamento jurídico internacional, laboriosamente construído através de séculos.

Os outros princípios elencados no artigo 4 não se encontram definidos no texto do capítulo de arbitragem, o que poderá dar ensejo a conflitos, grandes confusões e conseqüentes injustiças. Por exemplo, na OMC, a questão da “economia processual” é altamente controversa por ter represento, na prática, a situação conhecida como “déni de justice” nos sistemas jurídicos codificados ou “non liquet” nos ordenamentos legais inspirados no direito inglês, e que significa a denegação da prestação jurisdicional, em vernáculo. De fato, sob o manto especioso da “economia processual”, pleitos importantes deixaram de ser conhecidos. No âmbito da OMC, a “economia processual” é quase sempre utilizada contra os países em desenvolvimento.

O capítulo de arbitragem cria o fôro privilegiado da ALCA para todas as questões atinentes ao acordo da ALCA. Quanto às demais, poderão ser submetidas tanto ao sistema de resolução de disputas da OMC, quanto ao da ALCA, à exclusão do outro[11] . Estes dispositivos deverão criar enorme controvérsia, tendo em vista que a maior parte das matérias substantivas, senão a totalidade, deverá ser de jurisdição de ambos os sistemas, e que haverá uma discrepância importante na regulamentação processualística de ambos, o que implicará certamente numa relação hierárquica de credibilidade dentre eles. A subordinação do sistema de resolução de disputas da OMC ao da ALCA poderá trazer diversos prejuízos decorrentes do fato de que não se pode vislumbrar que aquele da ALCA consiga ser menos dependente à manipulação dos EUA do que aquele da OMC[12] .

O sistema de arbitragem da ALCA, cria, à semelhança daquele presentemente existente na OMC, um sistema confidencial de consultas[13] . É na área de consultas que se dá a maior parte das derrotas dos países em desenvolvimento no âmbito da OMC, sendo que os EUA prevalecem em cerca de 100% das consultas, conforme avaliações de suas autoridades de comércio internacional. O seu mecanismo não transparente tem ainda implicado, na OMC, na falta de controle democrático dos atos praticados pelos agentes governamentais dos países em desenvolvimento[14] , devido ao sigilo nas concessões feitas. É de se notar que a proposta feita pela Índia na reforma do sistema de consultas da OMC, de dar maior consideração aos interesses dos países em desenvolvimento, não tenha sido levada em consideração no âmbito da ALCA.

Similarmente ao que existe presentemente na OMC, o capítulo de arbitragem da ALCA cria um painel de primeira instância e outro de apelação[15] . O primeiro, seguindo o vício consagrado na OMC, terá caráter não permanente e será nomeado pelo Secretariado, que na OMC é controlado pelas potências hegemônicas, através da indicação dos postos-chave na Divisão Jurídica. Como na OMC, haverá uma lista de árbitros de primeira instância[16] , mas naquela organização estes normalmente não são nomeados, em detrimento dos amigos dos componentes da Divisão Jurídica do Secretariado, com os previsíveis resultados. No âmbito da reforma do sistema de resolução de disputas da OMC, muitas propostas foram apresentadas para a criação de um corpo permanente de árbitros de primeira instância, de forma a combater a imoralidade que se instalou em Genebra. Uma de tais propostas foi apresentada pela UE, uma notória beneficiária do sistema.

Igualmente ao que ocorre hoje no âmbito da OMC, o grau de apelação no sistema de arbitragem da ALCA terá um corpo permanente de 7 árbitros, indicados por um mandato de quatro anos, prorrogável por igual período[17] . A jurisdição de segunda instância será sobre questões de direito, apenas[18] . O painel de segunda instância decidirá por maioria de votos[19] . O painel do grau de apelação, da mesma maneira que ocorre na OMC e que muitos problemas têm causado, não terá poderes para remeter os autos para o painel de primeira instância, convertendo o julgamento em diligência, com o objetivo de complementar ou esclarecer questão de fato. Isto é uma falha adicional do sistema não permanente de árbitros de primeira instância, já que quando o caso sobe para o grau de apelação, o painel original de árbitros não mais existirá.

As regras processuais do sistema de arbitragem da ALCA, formuladas com base naquelas presentemente existentes na OMC, são igualmente muito falhas. O sistema de arbitragem da ALCA admite o litisconsórcio ativo[20] , mas é silente quanto ao litisconsórcio passivo. Segundo o artigo 19 do capítulo de arbitragem, “quando uma parte não é uma parte na disputa, ela poderá participar como terceira parte” (sic). Este é o mesmo mecanismo existente no ERD, que tem sido amplamente criticado no âmbito da OMC. Esta situação tem resultado, na OMC, na criação de painéis distintos para o julgamento de questões conexas, com decisões díspares e, até mesmo, conflitantes. Tal qual o ERD, o sistema de arbitragem da ALCA não contempla, como veremos mais abaixo, o instituto da reconvenção, o que agrava ainda a confusão processual e a multiplicação de painéis, num grande “imbroglio” que vem consistentemente prejudicando os países em desenvolvimento, no âmbito da OMC. Da mesma maneira, a participação de advogados não é regulada, nem mesmo contemplada. Mais ainda, instala-se nas regras processuais do sistema de arbitragem da ALCA grande insegurança jurídica e um risco ao princípio basilar isonomia, com a permissão da criação de regras processuais idiossincráticas pelos painéis[21] .

Da mesma maneira, a questão das regras de prova e evidência, que é absolutamente deficiente na OMC, foi copiada pela ALCA[22] . Há também na proposta da ALCA um anexo com regras de procedimento, absolutamente inadequadas, mas com alguns poucos progressos com relação às da OMC [23] , como por exemplo um tratamento da questão do “ônus da prova”, objeto de bizantinos debates no sistema multilateral [24] . Por outro lado, numa das poucas inovações com relação ao sistema da OMC, foi admitido o instituto das medidas cautelares, denominadas “medidas provisórias” no âmbito da arbitragem da ALCA[25] . Como veremos abaixo, tendo em vista as dificuldades no sistema de sanções como presentemente estruturado no sistema de arbitragem da ALCA, formulado com base naquele da OMC, é difícil vislumbrar como poderão tornar-se exeqüíveis as “medidas provisórias”. Trata-se de um instituto, assim, de nenhuma eficácia jurídica, pela falta de sanções.

O sistema de arbitragem da ALCA, à semelhança do seu modelo da OMC, peca igualmente por muitas omissões processuais de fundamental importância para qualquer sistema jurisdicional. Assim, o sistema não possui qualquer instrumento processual para o tratamento de preliminares como, inter alia, carência de ação, perda de objeto, ilegitimidade de parte, incompetência de foro ou conflito de tratados. A experiência da OMC demonstrou que estas omissões trazem um alto custo para os países em desenvolvimento, no que toca à derrogação de direitos reconhecidos por outros tratados. A minuta do sistema de arbitragem da ALCA, como visto ut supra, situa este tratado acima daquele da OMC, mas é silente sobre eventuais outros conflitos e como resolvê-los. Na OMC, esta situação tem derrogado direitos decorrentes de tratados de hierarquia superior, com por exemplo aqueles pertinentes à Organização das Nações Unidas (ONU), em questões de direitos ao desenvolvimento e direitos humanos. Da mesma forma, ainda nas lacunas processuais, o sistema de arbitragem da ALCA, à semelhança do tratamento dispensado na OMC, não admite o instituto da reconvenção, como já mencionado acima, o que pode causar a existência de dois casos conexos, com painéis diversos, com possíveis termos de referência semelhantes e com resultados desencontrados.

Neste diapasão, é de se mencionar o papel da aplicação das súmulas vinculantes ou a chamada doutrina “stare decisis” no âmbito do Órgão de Resolução de Disputas (ORD) da OMC, que ocasionou a criação ilegal de direito por jurisprudência, sempre em detrimento dos países em desenvolvimento. Esta situação ensejou protestos diversos destes no âmbito multilateral, como mencionado ut supra, culminando com propostas para coibir tal prática na reforma em andamento na Rodada Doha. De fato, o direito internacional não reconhece a doutrina “stare decisis”, de vez que os Estatutos da Corte Internacional de Justiça dispõe que uma decisão só é exeqüível contra as partes de uma dada disputa [26]. Da mesma forma, o ERD dispõe que as decisões do ORD não podem acrescer ou diminuir os direitos e obrigações elencados nos tratados da OMC [27]. Mais ainda, o ERD condiciona a jurisdição do ORD a preservar e esclarecer os direitos e obrigações decorrentes dos tratados da OMC, de acordo com as regras de interpretação do direito internacional [28] . Pois bem, no proposto sistema de arbitragem da ALCA não há nada para assegurar que tais abusos não sejam repetidos também neste foro.

À semelhança do que ocorre na OMC, o sistema de arbitragem da ALCA não enseja laudos ou decisões auto-exeqüíveis. Esta falha gerou graves problemas no âmbito multilateral, onde a maioria das decisões tem problemas de execução ou implementação. Assim, por ocasião de uma decisão, a parte vencida terá como opção a oportunidade de remover a medida causadora da divergência [29] . Caso, todavia, a parte vencida recuse-se a tanto, não haverá nenhuma execução específica do laudo ou ainda uma compensação monetária. Como alternativa, caberá então à parte vencedora da disputa entrar em entendimentos com a parte vencida para tentar acordar em compensações, isto é, a revogação de vantagens tarifárias da primeira para com a segunda, com o objetivo de compensar as perdas sofridas pela primeira como resultado das medidas ilegais da segunda. Caso não haja entendimentos entre as duas partes, caberá à arbitragem da ALCA determinar a natureza e montante da revogação das vantagens tarifárias, o que é chamado de retaliação [30] , sempre incidente contra setores da economia do país perdedor diversos do segmento econômico envolvido na disputa original.

Esta sistemática importada da OMC tem o gravíssimo inconveniente de penalizar a corrente saudável de comércio entre os dois países envolvidos numa dada disputa, além de não ter execução específica na remoção da medida julgada ilegal ou inconsistente com a ordem jurídica de regência da atividade afetada. Assim, no sistema da OMC, uma retaliação pertinente a uma vitória no setor aeronáutico poderá refletir numa majoração tarifária no setor automotivo. Esta situação, além de não resolver a anomalia existente no setor aeronáutico, estará penalizando um setor que nada tem a ver com a disputa em questão e que pode ser eminentemente saudável. No âmbito da Rodada Doha da OMC, muitas são as propostas para a reforma do sistema de sanções, prevendo-se uma árdua batalha antes que um consenso seja obtido. Qualquer progresso feito no âmbito multilateral fará o seu sistema de resolução de disputas certamente mais eficaz do que este proposto para a ALCA.

Por outro lado, a questão do tratamento do “amicus curiae”, que era inexistente no âmbito do ERD, mas que foi regulamentado pela jurisprudência ilegal do ORD da OMC, o que ensejou grandes críticas por parte dos países em desenvolvimento, notadamente a Índia, está a ser tratada no âmbito da ALCA, como “aconselhamento perito”, a ser solicitado ou pelo painel, o que também é permitido pelo ERD, ou pelas partes [31] . Tal dispositivo, no sistema de resolução de disputas da ALCA resulta totalmente despiciendo, já que uma parte sempre poderá buscar auxílio onde bem entender, para o seu caso, e poderá ainda, se o quiser, incorporar estes subsídios em seus arrazoados. Valeria assim manter, tal qual na OMC, o direito do painel buscar elementos de convicção “sponte sua”, bem como enfrentar de frente a questão dos “amici curiae”, permitindo ou vedando sua participação, sendo que a última opção parece mais interessante na perspectiva dos países em desenvolvimento.

De resto, vale ainda observar que a formatação do proposto sistema de arbitragem da ALCA parece, pela técnica utilizada, ter sido quase, senão totalmente, de responsabilidade e iniciativa dos EUA, os grandes inspiradores e beneficiários do ERD da OMC. Isso ocorre tanto em questões substantivas, como também na técnica jurídica empregada. Mesmo onde há divergências entre os modelos, as soluções oferecidas são normalmente aquelas propostas, patrocinadas e/ou defendidas pelos EUA no regime multilateral. O governo brasileiro, representado pela administração do Presidente Fernando Henrique Cardoso, não fez contribuições dignas de nota às negociações deste capítulo e não trouxe, internamente no País, a questão a debate pela sociedade civil ou pelo Congresso Nacional.

Neste ponto, é de se ressaltar que, nos EUA a lei interna prevalece sobre os tratados internacionais de comércio na hierarquia das normas no direito constitucional daquele país [32] . Como conseqüência, muitos dispositivos dos tratados internacionais não revogam a lei doméstica e, por conseguinte, não beneficiam os nacionais dos países que entram em acordos comerciais com aquele país, notadamente os de caráter regional, onde as relações de poder fazem-se sentir de maneira mais contundente. No sistema proposto para a ALCA, teríamos então, uma situação bizarra e grotesca segundo a qual, numa hierarquia de normas, apareceria em primeiro lugar, o direito doméstico dos EUA, em segundo lugar, o direito regional criado pela ALCA, sob este teríamos as normas de direito internacional, e abaixo destas as da OMC. Isto representa uma inversão de valores, já que a rigor e de conformidade com o direito internacional a hierarquia é a seguinte: em primeiro lugar, as normas de direito internacional; em segundo lugar, as normas multilaterais da OMC, abaixo das quais as regras regionais da ALCA e, por último, o direito doméstico dos Estados, aí incluídos os EUA.

Assim, o sistema de resolução de disputas da ALCA, é baseado em um infame modelo que presentemente está sendo objeto de reconstrução e que trouxe enormes dificuldades e injustiças para os países em desenvolvimento no âmbito da OMC. Aplicado o sistema à ALCA, nos moldes que estão para ser superados pela reforma do ERD e ainda colocado, como está, acima da ordem multilateral da OMC e das normas de direito internacional, teremos uma inconstitucional e inaceitável derrogação da soberania nacional acrescida do infausto resultado de que nossas disputas comerciais com os EUA serão sempre apresentadas ao modelo que nos será mais adverso: aquele da ALCA, para inexoráveis perdas.

Assim, ainda que os argumentos macroeconômicos fossem favoráveis ao ingresso do Brasil na ALCA (e não o são), apenas a situação jurídica [33] seria decisiva a absolutamente desaconselhar tão temerária aventura.