SÃO JOSÉ DO RIO PRETO – Enquanto o direito doméstico de um Estado advém de uma constituição promulgada por um poder constituinte, o direito internacional não tem a mesma legitimidade ou clareza. Ao contrário, por ser criado por Estados soberanos para regular suas relações, o direito internacional tende a refletir a desigualdade em suas normas.

Uma exceção é o tratamento dado à questão dos direitos humanos que, conforme Bobbio, “é estreitamente conexa com os dois problemas fundamentais do nosso tempo, a democracia e a paz”. No entanto, nesse particular aparece a outra fraqueza do direito internacional, ou seja a dificuldade de se aplicar as sanções cominadas nos apósitos tratados contra a supremacia do poder bruto.

Hoje, deparamo-nos com uma situação em que a potência hegemônica, os Estados Unidos da América (EUA), abandonou o esforço de desenvolvimento do direito internacional. Assim, muitos importantes tratados internacionais, nos últimos anos, não foram assinados ou ratificados pelos EUA. Dentre eles encontram-se, inter-alia, o Protocolo de Kyoto, o Tratado de Banimento de Minas, a Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados, o Tratado de Banimento de Testes Nucleares, a Convenção sobre a Proibição de Armas Químicas, a Convenção sobre a Eliminação de Discriminação contra as Mulheres, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança e os Estatutos da Corte Internacional de Justiça, dentre muitos outros exemplos.

Ao mesmo tempo em que abandonaram os esforços de desenvolvimento do direito internacional, os EUA passaram a sistematicamente transgredir normas já estabelecidas e aceitas do sistema jurídico multilateral. Um caso notável e recente foi a decisão dos EUA no sentido do uso unilateral e preventivo da força militar contra o Iraque, em violação ao disposto no artigo 2 (4) da Carta da Organização das Nações Unidas (ONU), que proíbe especificamente o uso da força armada contra um outro Estado, a menos que em auto-defesa ou sob a égide daquela organização, por meio de apósita deliberação de seu Conselho de Segurança.

Essa ação militar ilegal configurou os EUA como tyrannus absque titulo, pelo vício de legitimação. Tendo vencido militarmente o conflito, os EUA tornaram-se o poder ocupante no Iraque, mas na qualidade de tyrannus quoad exercitium, pelo exercício ilegal do poder. Nas lições da história, a renúncia ao desenvolvimento do direito internacional e o repúdio às normas multilaterais levam inexoravelmente à barbárie. Não foi outro o ocorrido na ocupação do Iraque.

De fato, as forças de ocupação desenvolveram um “Manual de Interrogação”, que não tem precedente histórico desde o infame “Manual dos Inquisidores”, de Nicolau Eymerich, escrito em 1376. O Manual de Interrogação das forças armadas dos EUA, revisto por advogados estadunidenses, dentre outras, re-estabeleceu a regra omnes torqueri possunt, todos podem ser torturados.

Dentre as “técnicas” aconselhadas incluem-se a privação do sono, a exposição dos detentos a temperaturas extremas, o bombardeamento sonoro, luzes diuturnas, uso de capuzes por períodos prolongados, a manutenção em nudez constante, o desequilíbrio biológico, a privação de água e alimentos e o posicionamento físico estressante.

Com tais diretrizes, não é de surpreender que um relatório da insuspeita Cruz Vermelha Internacional, de fevereiro de 2004, tenha denunciado a prática sistemática das sevícias mencionadas e mais agressões físicas diversas e psicológicas, como ameaças de maus-tratos diretos ou agressões a familiares ou ainda de execução.

Muito embora os EUA e seus aliados tenham procurado descaracterizar tais práticas hediondas como simples abusos, na realidade o direito internacional tem uma capitulação mais precisa: a de crimes contra a humanidade!

De fato, a definição de tortura foi dada pelo direito internacional a partir da “Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes”, de 1984. Essa convenção definiu tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões; de castigá-la por ato que ela ou terceira pessoa tenha cometido ou seja suspeito de ter cometido, de intimidar ou coagir essa pessoa ou outras pessoas; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza, quanto tais dores ou sofrimentos são infligidos por um funcionário público ou outra pessoa no exercício de funções públicas, ou por sua instigação, ou com o seu consentimento ou aquiescência”. A convenção foi assinada e ratificada pelos EUA e pela União Européia (UE).

Por sua vez, o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, assinado mas não ratificado pelos EUA, em seu artigo 7,2 “e”, define tortura como o ato de “infligir intencionalmente dores ou sofrimentos graves, físicos ou mentais, a um indivíduo que o acusado tenha sob sua custódia ou controle (…)”. O mesmo estatuto capitula a tortura como crime contra a humanidade, em seu artigo 7, 1, “f”.

O Estatuto em seu artigo 77, 1, comina as seguintes penas ao réu considerado culpado por um dos crimes ali previstos: “(a) pena de reclusão que não exceda 30 anos; ou (b) pena de prisão perpétua, quando justificada pela extrema gravidade do crime e pelas circunstâncias pessoais do condenado”.

Contudo, a jurisdição do Tribunal Penal Internacional é circunscrita aos Estados signatários do Estatuto (artigo 12, 1) e àqueles que houverem aceitado sua jurisdição ad-hoc. A responsabilidade penal por crimes no âmbito da jurisdição do tribunal estende-se ao comandante militar responsável pelas forças agentes, nos termos previstos no artigo 28 do estatuto, inclusive no caso em que tinha conhecimento de sua prática e se omitiu a respeito.

Assim, resulta claro que a barbárie desencadeada no Iraque, mas não somente ali, pelos EUA e seus aliados, configura crime contra a humanidade, nos termos do estatuto. Essa barbárie somente pôde ocorrer como resultado de uma prévia e sistemática renúncia, por parte daquele país, ao desenvolvimento do direito internacional e da flagrante, sistemática e continuada violação às suas normas.

Tais atos, tão tenebrosos quanto repugnantes, demonstram o quanto Hegel estava equivocado ao ensinar aos seus alunos, em Berlim, que a razão governa o mundo. Ao contrário, essas ações evocam o libelo de Ernesto “Che” Guevara por ocasião de seu discurso na 19ª Assembléia Geral da ONU, no sentido de que “a chamada civilização ocidental esconde-se atrás da fachada de um bando de chacais e de hienas”.

Esse estado de coisas coloca perante a comunidade internacional o corolário necessário, óbvio e irrefutável de que hoje os EUA são a maior ameaça à paz e ao estado de direito nas relações internacionais, bem como introduz o desafio de como conter a potência hegemônica. A emergência das trevas apenas será obtida com a prevalência do império da lei no convívio multilateral, pois somente o direito internacional pode promover a civilização ao mesmo tempo em que combate a barbárie.