A questão do regionalismo, e bem assim do multilateralismo, comercial transferiu-se dos gabinetes técnicos para as primeiras páginas dos jornais e grande destaque nos rádios e televisões. Isto ocorreu todavia, apenas depois de firmada a percepção, na opinião pública, de que aquilo que é negociado nos foros regionais e multilaterais afeta o desempenho econômico nacional, o desenvolvimento social e as perspectivas de vida de todo cidadão. Este é um fenômeno relativamente recente nos países em desenvolvimento. A falta de maior tradição na área, prejudica a sociedade civil nestes países pela dificuldade de entendimento do tema e de suas implicações estratégicas para o futuro das nações.

O tema de hoje permitirá a análise do histórico do desenvolvimento do regionalismo comercial; sua concepção para as potências hegemônicas; as implicações para os países em desenvolvimento e suas populações; e algumas alternativas estratégicas.

Desde a criação do sistema multilateral de comércio, com a assinatura do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), em 1947, o regionalismo foi admitido como uma exceção ao princípio da cláusula da nação mais favorecida, um de seus alicerces, no artigo 24. A regra era o multilateralismo e a prática seguiu a regra por muitos anos, mesmo porque sempre foi a preferência dos Estados Unidos da América (EUA), o então líder do mundo capitalista, que se contrapunha ao bloco comunista naquilo que se convencionou chamar de guerra fria.

Contudo, quando do lançamento da Rodada Uruguai do GATT, em 1986, houve, pela primeira vez, um confronto entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento[1]
. Queriam aqueles a inclusão no sistema multilateral das chamadas áreas novas, que compreendiam serviços, inclusive financeiros e telecomunicações; investimentos; e propriedade intelectual. Por sua vez, os países em desenvolvimento resistiram à iniciativa, enquanto não fossem incluídos no sistema multilateral de comércio as tradicionais áreas agrícola e têxtil, de larga importância para eles e, injustificadamente excluídas do GATT. Seguiu-se uma acrimoniosa disputa que durou até 1991.

No ínterim, frustrados pelo bloqueio resultante do sistema consensual de decisões, os EUA abandonaram a preferência pelo sistema multilateral e buscaram um acordo regional com seus parceiros mais importantes, Canadá e México. Tanto um como outro já tinham uma grande concentração de comércio com seu poderoso vizinho, da ordem de 72% da pauta comercial global. O Canadá já tinha um acordo de livre comércio com os EUA.

Por sua vez, a União Européia (UE) não ficou atrás e até mesmos diversos países em desenvolvimento perseguiram uma agenda regional. Tanto os EUA como a UE buscavam nos acordos regionais as concessões pendentes no sistema multilateral, mais fáceis de serem extraídas no confronto direto com seus parceiros mais fracos. Todavia, a motivação dos países em desenvolvimento foi diversa daquela dos países hegemônicos, naquilo em que buscavam o acesso negado por estes aos seus produtos agrícolas e, até certo ponto, industriais. Assim, foi assinado o Tratado de Assunção, em 1991, contemplando a criação do MERCOSUL, ocorrida em 1994, mesmo ano da assinatura do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA).

O fato que o NAFTA foi negociado pelo México por uma administração notoriamente corrupta e incompetente, que se caracterizou, nas palavras de C. Fred Bergsten, “pela aceitação virtual de tudo o que se lhe pediu e por fazer todas as concessões”, permitiu aos EUA a formatação de um modelo idiossincrático de acordo regional comercial altamente vantajoso, para aplicação a outros países. A situação não passou desapercebida à UE, que também adotou o mesmo figurino, o qual tem as seguintes características básicas:

AGENDA AFIRMATIVA:

a. criação do modelo do cubo e dos raios[2]
, segundo o qual as trocas industriais e de serviços, bem como os investimentos de terceiros, vem do cubo para os países raios;

b. a abertura dos mercados de serviços dos países raios;

c. redução tarifária nos países raios;

d. formulação de regras de origem de modo a favorecer largamente os produtos do bloco, particularmente os do país cubo;

e. fluxo livre de moedas e garantia de conversibilidade dos estados raios para os créditos públicos ou particulares do cubo;

f. imposição de critérios legislativos próprios do cubo aos raios nas mais diversas áreas, mas notadamente na área trabalhista, previdenciária e no Judiciário;

g. emasculação do Judiciário dos países raios para questões comerciais, mediante o desvio de competência para o Judiciário cubo e para tribunais arbitrais; e

h. colheita precoce do que for possível.

AGENDA DEFENSIVA:

a. preservação dos subsídios agrícolas do cubo;

b. manutenção da legislação unilateral idiossincrática, incluindo a pertinente a medidas anti-dumping;

c. preservação do regime constitucional que coloca a legislação ordinária acima dos tratados internacionais, incluindo os comerciais;

d. admissão aos países raios apenas de acesso ao fornecimento ao país cubo de produtos baratos de consumo com baixo valor agregado; e

e. dilação de quaisquer concessões para o futuro o mais distante possível, preferencialmente no âmbito do sistema multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC).

Tal modelo funcionou admiravelmente bem, para os EUA, no âmbito do NAFTA. Como resultado, as exportações norte-americanas para o México cresceram 50% e a dependência comercial de trocas com os EUA aumento de, aproximadamente, 72% para cerca de 90% nos anos subseqüentes à assinatura do NAFTA. Mais ainda, os EUA dominaram as principais áreas dos mercados de serviços, principalmente no setor financeiro, o mais relevante do segmento, que foi totalmente desnacionalizado. Curiosamente, já em 1995, Noah Chomsky previu tal acontecimento e prognosticou ominosamente que o México perderia, como conseqüência, “a soberania para formular planos econômicos e promover um desenvolvimento independente”[3]
. E assim foi. Em 2001, um estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade Autônoma do México, conduzido pela Doutora Leticia Campos, chegou à nada surpreendente conclusão de que “o governo mexicano já perdeu o comando da economia local” diante da realidade de que 95% do mercado daquele país, incluindo o setor financeiro, encontra-se sob o controle do capital estrangeiro[4]
.

Nas outras áreas de serviços, o México perdeu a economia de escala devido a falta de acesso de seus nacionais aos mercados dos EUA (e também do Canadá), sujeitos a uma infame e reduzidíssima quota de 5.000 pessoas por ano. Conseqüentemente, o setor nacional de serviços de alta especialização mexicano deixou de existir. Por exemplo, o México tem apenas um milhão e meio de usuários de internet, contra dez milhões e quatrocentos mil de usuários no Brasil e de um milhão na Argentina, que tem um terço da população mexicana. Seus prestadores de serviços ficaram relegados às tarefas meniais, como cabeleireiras, cozinheiros, atendentes, motoristas, etc.

A UE aprendeu rapidamente as lições dos EUA, tendo adotado quase que a totalidade de sua agenda[5]
para a negociação de tratados comerciais regionais com países em desenvolvimento, que agora atingiu o número impressionante de 27 acordos diversos, inclusive um com o México[6]
. Outros 15 tratados comerciais estão presentemente sendo negociados pela UE. Por sua vez, os EUA tem, no momento, dois acordos regionais[7]
e perseguem um número grande deles, inclusive a “Área de Livre Comércio das Américas” (FTAA), esforços que estão sendo prejudicados pela falta de autorização apósita do poder legislativo ao poder executivo[8].

Para países como a Argentina e o Brasil, o modelo consagrado pelo NAFTA, que é a plataforma da ALCA, seria um grande desastre econômico e social, que certamente teria conseqüências políticas graves[9]
. Em primeiro lugar, o setor agrícola, em ambos os países, seria destruído pelos subsídios praticados pelos EUA, no valor de US$ 100 bilhões. Isto comprometeria os setores de trigo, soja e açúcar, este último responsável por cerca de 1.200.000 empregos rurais no Brasil e 300.000 na Argentina. Por conseqüência, os segmentos de reciclagem de proteína vegetal em animal, tanto granjeiro como suíno e bovino, seriam dramaticamente afetados de forma adversa. À guisa de comparação, no México o PIB agrícola diminuiu 17.6% durante o NAFTA, sendo que a produção de grãos caiu 27.6% e a de carnes decresceu 34.6%[10]
. Por sua vez a importação de alimentos aumentou de US$ 1,7 bilhão em 1982 para US$ 8,6 bilhões em 99 decorrente da perda de competitividade do setor agrícola local. Mais ainda, no México do NAFTA, o setor açucareiro encolheu cerca de 34%[11]. No Brasil, um efeito semelhante, muito provável no cenário da ALCA, ameaçaria a paz social no campo!

Mais ainda, os setores de serviços de alta complexidade seriam desnacionalizados, inclusive pela perda de economia de escala decorrente da falta de acesso aos mercados dos EUA por decorrência das barreiras horizontais de movimento de prestadores de serviços. Assim, os bancos comerciais serão estrangeiros e os de investimentos serão situados em Nova Iorque. As Bolsas de Valores e de Mercadorias regionais desaparecerão. Os advogados, auditores, contadores e consultores especializados em tarefas de alta complexidade serão os estrangeiros. O mesmo ocorrerá com os serviços médicos e hospitalares, de arquitetura, de engenharia e de informática. O setor educacional sofrerá grandemente pois estará fornecendo a educação mínima necessária para o desempenho de tarefas meniais, como servir merendas gordurosas e refrigerantes gasosos.

De fato, os setores domésticos de serviços dos raios serão condenados à função de “depósitos de mão de obra não-qualificada”[12], fábricas de pobreza. No sistema formatado pelo NAFTA, um país é competitivo na direta dimensão de sua miséria. No México de hoje, 80% da população vive abaixo do nível de pobreza. Os salários industriais caíram de US$ 127 em 1982 para US$ 74 em 1999. O país virou um exportador de miséria, de vez que os elementos mais ativos da economia são as remessas dos emigrantes, de cerca de US$ 6.3 bilhões em 1999, e as maquiladoras. A emigração do México para os EUA aumentou de 278.229 entre 1991 e 1997, para 366.000 entre 1998 e 1999, resultado do modelo econômico perverso que gera um défice anual de 500 mil empregos[13]
.

Por sua vez, numa ALCA erigida sobre os infames alicerces do NAFTA, o setor de audiovisuais mostrará apenas produtos americanos, confeccionados a um preço baixíssimo pela escala, o que eliminará a possibilidade de competição. Desta forma, a produção cultural dos demais países, outros que os EUA, entrará em inexorável declínio. As línguas regionais tornar-se-ão um patoá do dialeto americano.

Na área industrial, devido ao fato de que as tarifas sul-americanas são ainda relativamente altas, a celebração de um acordo comercial regional com um poder hegemônico tem o condão de alienar o outro. Os produtos manufaturados pelo poder excluído perderão drasticamente sua competitividade. No caso, tanto no Brasil como na Argentina, dentre EUA e UE, o principal parceiro econômico é a UE. Mais ainda, aproximadamente 60% dos investimentos estrangeiros recebidos na Argentina, como no Brasil, vem da UE. No Brasil, 82% dos investimentos estrangeiros são hoje direcionados ao setor de serviços!

A diversidade dentre os países tende a ser ignorada. Padrões e valores sub-culturais serão impostos para a legislação interna, para as relações sociais, para a vida acadêmica e cultural, para a expressão artística e para o funcionamento dos Poderes Judiciários. Decorrerá um agravamento do fenômeno perverso da globalização, magistralmente lembrado por Ernesto Sabato: “La humanidad está cayendo en una globalización que no tiende a unir culturas, sino a imponer sobre ellas el único patrón que les permita quedar dentro del sistema mundial”[14]
. Haverá, por conseguinte, uma grande derrogação de soberania também na formulação de política de desenvolvimento social e de afirmação individual. Como corrolário natural, seguir-se-á a transferência total de soberania na formulação das políticas monetária e econômica.

Acresce que Argentina e Brasil continuarão vítimas do unilateralismo e do arbítrio praticado pelos EUA mediante suas medidas idiossincráticas, como no caso do anti-dumping. Seu direito constitucional continuará a colocar seu ordenamento jurídico interno acima de suas obrigações internacionais e a legislação de implementação de um eventual tratado subordinará sua eficácia às normas domésticas. Um tal acordo comercial valerá contra os países raios, mas não necessariamente contra o cubo.

Um exemplo prático e interessante a respeito da questão da hierarquia das normas do direito americano e o relativo à matéria dos transportes rodoviários. O NAFTA assegurou aos transportadores rodoviários mexicanos o acesso ao território dos E.U.A.. Todavia, as barreiras horizontais administrativas impostas por este país impediu sua ocorrência. Inconformado, México solicitou a formação de um painel de arbitragem para dirimir a questão, havendo recentemente prevalecido a seu favor. Derrotado no painel, o Congresso Americano ontem aprovou uma lei interna derrogando os direitos mexicanos provenientes do NAFTA.

Mas este cenário dantesco não seria largamente compensado pelo acesso ao mercado dos EUA dos produtos de consumo de baixo valor agregado, que requerem o emprego de mão de obra barata? – Absolutamente, não! O modelo de importação de tais produtos pelos EUA já está esgotado e não se presta para a ampliação em grande escala. De fato, os EUA já tem um défice comercial de US$ 500 bilhões por ano! Até que ponto o consumidor americano tem condições de engordar mais ou de comprar um maior número de camisas e de calçados esportivos do que já adquire? Até que ponto o sistema bancário norte-americano vai conseguir sustentar a alavancagem e endividamento financeiro do consumidor, quando mais expandir o que já é claramente excessivo? Lembre-se que os países da Ásia já exportam para os EUA cerca de 37% do Produto Interno Bruto (PIB) regional[15]
e buscam empenhadamente a formulação de estratégias alternativas, regionais e internacionais, pelo esgotamento do presente modelo. Dentre tais alternativas está a criação de uma rede trocas regionais apoiada por US$ 100 bilhões de suporte monetário dentre os membros da ASEAN mais Japão, China e Coréia do Sul[16]
.

Por sua vez, é duvidosa, a médio prazo, a continuidade da própria hegemonia da moeda norte-americana, a qual tem permitido, há décadas, a sustentação de défices comerciais que são incompatíveis com quaisquer critérios responsáveis de gestão macro-econômica. O fim da guerra fria possibilitou a emergência do Euro, que oferece alternativa de moeda hegemônica. Por sua vez, os países asiáticos supra referidos estão em entendimentos para a criação de uma área de livre comércio regional e um fundo monetário regional, que terá reservas monetárias de aproximadamente US$ 1 trilhão, as maiores do mundo e, certamente, maiores daquelas dos EUA[17]
. Com tais desdobramentos, uma guerra comercial[18]
internacional parece eminente e os confrontos que se desenrolam na OMC, tanto no sistema de resolução de disputas, como nas tratativas de formulação de agendas para a novas rodadas de negociações, são certamente ominosos.

Para os países em desenvolvimento, as opções estratégicas que se apresentam no momento atual são de grande complexidade, tanto pela natureza da matéria, como pelo momento de grande evolução e pouca clareza dos cenários. Certamente, é difícil para tais países resistir às pressões hegemônicas para um pacto regional comercial, bem como para buscar alternativas próprias, já que se encontram os países em desenvolvimento obnubilados em sua capacidade de formulação de políticas estratégicas, pela grande dependência aos centros do poder. Preferencialmente, para evitar o cenário dantesco descrito anteriormente, devem os países em desenvolvimento evitar acordos comerciais com as potências hegemônicas. Para tratar com as potências hegemônicas, é melhor fazê-lo no âmbito multilateral da OMC[19]
.

Acordos de regionais de comércio devem ser firmados apenas com potências não hegemônicas. São estes os que trazem as reais possibilidades de crescimento e sucesso! Desgraçadamente, está grandemente disseminada a falácia que os países em desenvolvimento não tem condições de oferecer mercados para as exportações de outros países em desenvolvimento[20]
. Todavia, é outra a avaliação que destes mercados fazem os países desenvolvidos, para fins de colocação de suas próprias exportações! O comércio exterior da China (Hong Kong incluído) é de US$ 715 bilhões e, se somado ao do Japão (de US$ 716 bilhões) resulta em um volume próximo ao comércio externo dos Estados Unidos (US$ 1,558 trilhão). Outros países em desenvolvimento tem um comércio exterior importante: o da Coréia do Sul, de US$ 279 bilhões; o de Taiwan, de US$ 228 bilhões; o da Índia, de US$ 81 bilhões; da Malásia, de US$ 117 bilhões; o da África do Sul, de US$ 59 bilhões.

Se, todavia, desgraçadamente, não puderem deixar de celebrar acordos comerciais regionais com potências hegemônicas, tais pactos deverão ser formulados com ambas, EUA e EU, e deverão procurar desmantelar os efeitos nefastos das agendas positivas e negativas. Concomitantemente, devem os países em desenvolvimento procurar buscar, à semelhança do que fazem os asiáticos, desenvolver o sistema de trocas regionais, com outros países não hegemônicos, criando um guarda-chuva monetário para assegurar a viabilidade do sistema. Deve-se ter sempre presente, em negociações comerciais internacionais, que para países como o Brasil (o 3º país do mundo menos dependente do comércio exterior) e a Argentina (o 5º país do mundo menos dependente do comércio exterior), onde o comércio exterior representa apenas 7.3% e 8.6%, respectivamente, do PIB[21]
, e que as concessões feitas dentro de acordos hegemônicos destroem a capacidade dos agentes nacionais de atuar na economia doméstica. A contrário senso, estando todos os países submetidos à busca de uma só moeda, o dólar americano, seu potencial de crescimento estará limitado a capacidade de absorção, pelos E.U.A., de suas exportações. Uma idéia seria que parceiros desenvolvimentistas aceitassem um determinado volume de moeda de outros países em desenvolvimento para fins de trocas externas.

Não se pode deixar de notar que os asiáticos estão caminhando para uma versão assemelhada daquilo que se procurou fazer com o MERCOSUL, fugindo da dependência hegemônica, tanto comercial, quanto monetária. A iniciativa da ALCA busca afirmar o modelo da dependência hegemônica. Será que estariam equivocados Japão, China, Coréia do Sul e seus demais parceiros regionais, todos com grande experiência e sucesso no árduo embate do comércio internacional?

Senhoras e Senhores, Caros Amigos, meu muito obrigado.