O regime jurídico multilateral de regência, o Acordo Agricultura, um dos tratados da Rodada Uruguai, se teve o mérito de, pela primeira vez desde o velho GATT em 1947, tratar dos produtos agrícolas, por outro lado permitiu a manutenção do escandaloso sistema de subsídios praticado pelos países desenvolvidos, no patamar devastador de mais de US$ 1 bilhão por dia. Esses subsídios, instrumentos hediondos do comércio predatório e desleal, promovem a miséria e a desesperança nos países em desenvolvimento, ao mesmo tempo em que oneram o contribuinte e o consumidor dos países desenvolvidos.
O Acordo Agricultura tratou dos subsídios agrícolas em três categorias distintas. A primeira delas é o apoio doméstico, que inclui a pesquisa, o controle de pestes, trabalhos de infra estrutura, programas ambientais e de assistência regional. Em meu livro, A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai, eu chamei o apoio doméstico de subsídio disfarçado. Para mensurar o apoio doméstico, foi criado o cálculo denominado Medida Agregada de Apoio (MAA), que quantifica expressão monetária do suporte doméstico. A segunda categoria são os subsídios permitidos, também chamados de caixa verde. Por último, temos a categoria dos subsídios contingenciados, ou seja aqueles sujeitos ao compromisso de redução, que são os pagamentos diretos condicionados ao desempenho na exportação; pagamentos diretos para redução dos custos incidentes à produção; e financiamentos à exportação e a tributos, dentre outros.
Dez anos após a celebração dos Tratados de Marraqueche, os efeitos do Acordo Agricultura na redução aos subsídios foram pífios. Isso se deu, de um lado, devido ao fato de que as bases de cálculo para desgravação dos subsídios foram inflacionadas fraudulentamente pelos países desenvolvidos. Por outro lado, a própria formatação do tratamento da questão, favorável ao regime dos subsídios, impediu sua redução. Como tive a oportunidade de discorrer em meu artigo “Alguns Fundamentos para as negociações comerciais soberanas”, as tratativas preliminares, que dão a formatação do conteúdo dos tratados, freqüentemente são tão ou mais importantes quanto as negociações finais. O Acordo Agricultura é um eloqüente exemplo desse enunciado.
A decisão do Conselho Geral da OMC de 31 de julho de 2004 trouxe progressos para a formatação das negociações futuras do setor agrícola ao determinar o tratamento em separado da questão do algodão, de uma maneira “ambiciosa, específica e rápida”. Durante as negociações preliminares, o Grupo dos 20 havia proposto, baldamente, uma rápida eliminação de todos os subsídios ao algodão e a criação de um mecanismo de compensação durante a respectiva defasagem.
Contudo, infelizmente não se acordou na revisão dos critérios de categorias de subsídios fornecidos pelo Acordo Agricultura, mas sim em negociar, de acordo com determinados parâmetros, com base na formatação dada por este tratado internacional. No meu modo de pensar, esta concessão feita pelos países em desenvolvimento já representa uma derrota expressiva, porque inevitavelmente irá implicar numa redução modesta e diferida no tempo dos subsídios praticados pelos países desenvolvidos.
Assim, no tocante ao apoio doméstico, a redução do MAA deixará de lado muitos dos programas de subsídios disfarçados ora em existência. Mais ainda, a primeira concessão de redução de 20% será ilusória, já que baseada (mais uma vez) em níveis irreais, por excessivamente elevados, no caso as tarifas consolidadas, sabidamente inferiores àquelas efetivamente praticadas. Por sua vez, os esquemas de financiamento de limitação de produção, chamados de Caixa Azul, que os países em desenvolvimento queriam ver eliminados, continuarão a ser permitidos. Uma oportunidade que se apresentará aos países em desenvolvimento durante as negociações será a revisão dos critérios dos subsídios permitidos, chamados Caixa Verde.
Dessa maneira, a Rodada Doha não trará o capítulo final para a infame história dos subsídios agrícolas e, assim, os países em desenvolvimento continuarão, ainda por muitos anos, vítimas do especioso regime do livre comércio.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).