Mais recentemente, a ilegal invasão do Iraque, face ao direito internacional de regência, resultou na violação ampla de direitos humanos e das liberdades democráticas nos principais países membros da chamada coalisão. O caso mais amplamente citado é o dos EUA (Estados Unidos da América), inclusive no recente relatório do governo da República Popular da China, objeto de meu artigo “As denúncias da China sobre os abusos de direitos humanos nos EUA”. Mas não é o único!
Na sexta-feira passada, o parlamento britânico, por iniciativa do governo de Tony Blair, aprovou uma lei denominada Prevention of Terrorism Bill, ordenamento de prevenção ao terrorismo, que limitou de maneira expressiva as tradicionais liberdades democráticas e o próprio recurso ao habeas corpus. Para aqueles interessados nas idiossincrasias do processo constitucional britânico, recomendo como fundamento a releitura de meu artigo “A Constituição não escrita do Reino Unido” Como é sabido, o habeas corpus tem sua origem genérica na própria Magna Carta, de 15 de junho de 1215, porque foi aí que se introduziu, no direito inglês, o conceito do due process of law, devido processo legal. Como a Magna Carta foi escrita em (mau) latim, o termo original objeto de seu artigo 39 foi legale judicium, julgamento legal. Posteriormente, o Habeas Corpus Act, de 1679, introduziu propriamente o instituto, já com as características básicas atuais. O habeas corpus foi então transplantado para os ordenamentos jurídicos de quase todos os países e é, sabidamente, uma garantia do Estado de Direito.
Pois bem, sob o pretexto de combater as ameaças à segurança nacional apresentadas pelo terrorismo, o governo britânico propôs que, mediante ato meramente administrativo da parte de um ministro de Estado, possa-se proibir uma pessoa de usar certos serviços; limitar seu trabalho; impedir suas comunicações ou associações; confiná-la; restringir seus movimentos; retirar seu passaporte; obrigá-la a submeter-se a revistas; obrigá-la a dar informações; submetê-la à prisão domiciliar.
A nova lei britânica é característica dos regimes não democráticos, ditos de exceção ou ditatoriais. Lembro, por exemplo que, dentre nós, no Brasil, naqueles anos sombrios da ditadura militar, de acordo com o disposto no Ato Institucional número 5, de 13 de dezembro de 1968, ficou suspensa sine die a garantia do habeas corpus em casos de crimes políticos contra a segurança nacional, a ordem econômica e a economia popular (sic). Tal qual a lei inglesa, o AI 5 não oferecia um termo final para a restrição arbitrária.
O povo inglês ainda não reagiu em massa à potencial ameaça aos seus direitos. Creio que muito vá depender de como os ditatoriais poderes sejam aplicados na prática, pelo governo britânico. Há um precedente de suspensão do habeas corpus em 1817, causada por uma pedra atirada no então príncipe regente, mediante o chamado Gagging Act, a lei da mordaça. Essa lei teve grande impopularidade e foi, por conseguinte, revogada no ano seguinte, reestabelecendo-se a plenitude do alcance do instituto.
De qualquer maneira, teme-se como o governo de Tony Blair vá conduzir a questão. Diz-se cá que o perfil do líder inglês tem muito em comum com o de Benito Mussolini, mas com uma diferença básica. Em comum, tem o fato que ambos eram socialistas na origem e se tornaram radicais de direita; que ambos eram admiradores do Reino Unido; que ambos lançaram-se numa guerra de agressão contrária ao direito internacional; que ambos tinham um führer dominante, Hitler, no caso de Mussolini, e Bush, no caso de Blair; que ambos eram demagogos baratos; e que ambos limitaram as liberdades democráticas de seus povos. A diferença é que, enquanto Mussolini fez com que os trens italianos andassem no horário, Blair liquidou com o pouco que restava da credibilidade dos transportes públicos britânicos.
Num país onde as tradições fazem em parte o direito constitucional, e na iminência de eleições gerais a se realizarem provavelmente em maio próximo, faz-se oportuna a lembrança do pensamento de um dos primeiros constitucionalistas ingleses, que escreveu ainda no século 13: “dicitur vulgariter ‘ut rex vult, lex vadit’; veritas vult aliter, nam lex stat, rex cadit” ou, em vernáculo, “diz-se vulgarmente: ‘o que deseja o rei, vira lei’; a verdade é contrária: onde prevalece a lei, cai o rei”.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).