Nunca uma proposta de acordo comercial foi tão criticada pela sociedade civil com o mesmo vigor e fervor que a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), principalmente na Argentina e no Brasil, mas também no Paraguai e Uruguai. Como sabemos, a ALCA foi modelada após o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA) firmado entre Canadá, México e Estados Unidos da América (EUA) em 1992, vigente desde 1994. O NAFTA foi negociado pelos EUA com o comprometido governo mexicano de Salinas de Gotari, que aceitou praticamente tudo o que foi proposto, sem fazer exigências significativas. O NAFTA gerou dois precedentes na política comercial dos EUA, sendo o primeiro deles o redirecionamento do multilateralismo para o regionalismo. Isto ocorreu como resultado das frustrações norte-americanas em relação à agenda prevista, no início da Rodada Uruguai do GATT, devido à oposição dos países em desenvolvimento organizada pelo Grupo dos 10. O segundo novo precedente refere-se à hierarquia de leis dos EUA, segundo a qual normas internas são superiores aos tratados internacionais de comércio e a respectiva legislação implementadora de todas as convenções subsequentes [1].
O escopo da ALCA é muito ambicioso e inclui, de acordo com o Plano de Ação aprovado na Reunião de Cúpula de Miami em 1994, comércio de bens e serviços, agricultura, subsídios, investimentos, direitos de propriedade intelectual, compras governamentais, barreiras técnicas ao comércio, salvaguardas, regras de origem, antidumping e medidas compensatórias, procedimentos sanitários e fitossanitários, resolução de disputas e direito da concorrência. No entanto, na realidade, os objetivos da efetiva liberalização são limitados aos idiossincráticos interesses dos EUA, o que revela um jogo brutal de resultado zero, no qual aquele país será o único beneficiário do pacto comercial, se o mesmo realmente vier a concretizar-se.
Assim, na área do comércio de bens, os EUA excluíram as importantes negociações relativas aos picos tarifários que envolveriam, inter alia, a legislação antidumping norte-americana, a qual se demonstra flagrantemente protecionista. Este ponto tem extrema importância para os países do MERCOSUL porque as tarifas industriais dos EUA já são muito baixas, em média 1,9%, devido à regra da cláusula da nação mais favorecida. Por outro lado, a questão dos picos tarifários é muito importante, já que, normalmente, afeta os produtos de exportação mais competitivos dos países em desenvolvimento. Assim, no caso do Brasil, por exemplo, aproximadamente 60% dos produtos de exportação sofrem barreiras tarifárias ou não tarifárias dos EUA, o que se reflete de maneira temerosa: aos 20 principais produtos de exportação para os EUA são aplicadas tarifas médias de 39,1%. Da mesma forma, aos 20 principais produtos exportados dos EUA para o Brasil são aplicadas tarifas médias da ordem de 12,9%. Como conseqüência, a redução das tarifas médias normais, mesmo que considerada no âmbito da ALCA, não beneficiaria as exportações do MERCOSUL face à concorrência de outros países sob a regra da nação mais favorecida. Progresso relevante seria alcançado com a eliminação dos picos tarifários. No entanto, os EUA excluem discussões sobre o tema no âmbito da ALCA, defendendo que tais questões deveriam ser discutidas na esfera da Organização Mundial do Comércio (OMC) onde tende-se manter o sistema atual, muito benéfico aos seus próprios interesses.
Com relação à redução das tarifas normais no âmbito do MERCOSUL, a situação é completamente diferente, uma vez que as tarifas praticadas no bloco comercial dos países em desenvolvimento são consideravelmente altas, em média 14%. Assim, uma considerável redução poderia resultar em grande distorção comercial como resultado da ampla margem de 14% favorável aos produtos norte-americanos, o que alienaria os parceiros comerciais tradicionais da região. Alguns dos tradicionais parceiros comerciais a serem alienados, como a União Européia (UE), também são responsáveis pela maioria dos investimentos estrangeiros diretos no MERCOSUL, bem como proporcionam a maioria das linhas de financiamento disponíveis na região. Outros países em desenvolvimento, cujo comércio demonstra-se crescente com o bloco, como a China, sofreriam muito. Pela mesma razão, o fluxo de comércio do MERCOSUL seria ampliado com os EUA de forma artificial. Este efeito deletério neutralizaria os benefícios geo-políticos do bloco.
O setor agrícola é, naturalmente, muito relevante para os países do MERCOSUL. No Brasil, por exemplo, 25% do PIB e 37% dos empregos dependem do agribusiness. Nos EUA existem atualmente não menos que 10 programas diretos e 10 indiretos de subsídios agrícolas. Em números absolutos, os subsídios agrícolas dos EUA somam US$150 bilhões, sendo que a produção agrícola total é de US$128 bilhões, o que faz com que os subsídios representem 115% da produção efetiva. Estes números surpreendentes significam que os EUA deixaram de ser economia de mercado no setor agrícola. O montante de subsídios agrícolas desembolsados pelo governo dos EUA represente aproximadamente duas vezes o valor total da produção agrícola do MERCOSUL e três vezes a do Brasil! Devido a disposições sobre garantia de preços dos programas norte-americanos, os mesmos têm natureza predatória com vistas à eliminação da concorrência internacional. Contudo, os EUA recusam-se a discutir a questão dos subsídios agrícolas no âmbito da ALCA e manifesta interesse de transferir a discussão à esfera da Rodada Doha da OMC. Não obstante, mesmo no âmbito da Rodada Doha, os EUA, neste caso, ao lado da UE, recusam-se a considerar a erradicação da prática. Desta forma, sem acordo sobre a eliminação dos subsídios agrícolas, a ALCA representa a falência do setor agrícola dos países do MERCOSUL, com conseqüências econômicas e sociais amplamente adversas.
Quanto aos serviços, os EUA desconsideram negociações sobre a eliminação de barreiras horizontais aos prestadores de serviços profissionais, o que continuará, sem dúvidas, mantendo os profissionais latino-americanos em desvantagem com relação aos seus parceiros, por exemplo da UE, Canadá e Japão. Além disso, a sensível questão da imigração de mão de obra não é objeto de discussão, da mesma forma que foi evitada no âmbito do NAFTA na clássica mentalidade avestruz [2], e não menos insensível. Assim, a área de serviços é restrita aos interesses da companhias norte americanas e não de interesse dos cidadãos do MERCOSUL.
Na área de investimentos, os negociadores norte-americanos buscam garantias governamentais por parte de todos os países latino americanos sobre a conversibilidade de moedas estrangeiras em dólares norte americanos, em nome de seus agentes da iniciativa privada. Isso, sem dúvidas, representaria enorme ônus aos tesouros nacionais de todos os eventuais signatários da ALCA. Como emissor do dólar norte americano, os EUA, perderam a oportunidade de propor a criação de um fundo próprio para garantir tal conversibilidade. Ademais, não foi incluída, no âmbito da ALCA, a assistência ao desenvolvimento regional, similarmente ao que foi feito pela UE. Na área de investimentos, a estrutura da ALCA omitiu questões como volatilidade de capital e assistência a fraudes tributárias em países em desenvolvimento. A estrutura proposta para a ALCA sobre investimentos não inclui as desigualdades ao acesso a recursos financeiros dos países em desenvolvimento membros, em comparação àqueles dos EUA e do Canadá [3].
Da mesma forma, em outras áreas de negociação, como o setor de compras governamentais, os países em desenvolvimento do MERCOSUL serão os sujeitos predatórios dos maiores contratantes norte americanos os quais, em muitos casos, irão neutralizar políticas de desenvolvimento e apoiar indústrias emergentes. Sem proteção e sem a devida abordagem sobre a concorrência desleal derivada da falta de acesso aos recursos financeiros da mesma natureza do que seus concorrentes, os países em desenvolvimento irão, inexoravelmente, sucumbir à concorrência para atender a seu próprio governo. No setor de resolução de disputas, o modelo adotado é o da OMC, acusado pelos países em desenvolvimento pela derrogação não autorizada de seus direitos sob outros acordos internacionais e o qual, atualmente, enfrenta processo sofrível de reforma de todos os seus 24 artigos e 4 anexos.
A postura norte americana durante as negociações do acordo de comércio lembrou um império impondo um diktat ao invés de um membro responsável da comunidade das nações agindo dentro dos parâmetros do direito internacional e engajado no esforço de assegurar prosperidade irrestrita [4]. Os EUA tentaram dividir os países da região em geral, mas particularmente aqueles do MERCOSUL, com o intuito de impor suas vontades. O MERCOSUL foi testado através de várias medidas, inclusive a indução à adoção de um padrão artificial de conversibilidade, em paridade com o dólar americano na Argentina, o que acabou causando a falência financeira daquele país. O primeiro foi representado novamente por muitas ações, não somente ofertas ilegalmente discriminatórias para grupos de países da região, CARICOM, PACTO ANDINO, e MERCOSUL. Portanto, a não estabilização dos governos é esperada para as fases finais das negociações, caso a resistência se materialize [5].
Em suma, sob a perspectiva legal [6] e pelas razões explanadas, os EUA negociam a ALCA em violação ao direito internacional, à luz da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, por ignorar o requisito da boa fé, consagrado no artigo 26 da Convenção. Os EUA também ignoram o princípio da não discriminação tratado no artigo 24 do Acordo Geral Sobre Tarifas e Comércio (GATT 1947), ainda vigente. Entretanto, sob a perspectiva sociológica, a percepção clara e generalizada das sociedades civis dos países do MERCOSUL entende o projeto da ALCA como instrumento de um jogo cujo resultado é zero, em que os países do MERCOSUL serão os perdedores absolutos. Além do mais, a iniciativa é encarada como parte de uma estratégia de sua submissão à condição de fornecedores de bens baratos para o mercado americano, nos termos da equação econômica e social bizarra na qual quanto mais miserável, mais competitivos [7]. Certamente, essa não é a visão pretendida para seu próprio futuro.
Senhoras e senhores, muito obrigado.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).