Publicado nos sítios waltersorrentino.com.br e vermelho.org.br, São Paulo, SP, 23 de dezembro de 2015.
O processo de destituição presidencial tem sua origem histórica na constituição dos Estados Unidos da América (EUA). Naquele país adotou-se o termo “impeachment”, que tem etimologia latina, pois vem de “impedicare”, ou impedir. Em língua portuguesa, dever-se-ia usar, portanto o léxico impedimento, ou ainda destituição. Há, todavia, aqueles que entendem que “impeachment” fica mais bonito, ou mais sério ou mais sofisticado, por ser expresso em língua estrangeira.
Nos debates que levaram à adoção da constituição dos EUA, Benjamin Franklin propôs a criação de um instituto jurídico para a destituição do presidente, que representasse uma alternativa legal e processual ao homicídio do primeiro mandatário. Foi uma postura a privilegiar o estado de Direito em detrimento ao exercício arbitrário das próprias razões.
Assim, no direito americano, o instituto do impedimento faz parte do arsenal de medidas que não apenas afirmam o império da lei, mas o confirmam. Em países onde as tradições democráticas não têm as mesmas raízes profundas, opiniões disparatadas têm sido expressas no sentido de que o processo de impedimento seria político. Nada mais equivocado.
O processo do impedimento é um que está sujeito ao regime legal previsto nas diversas constituições, portando de acordo com o estado de Direito. Nos EUA, a constituição elenca os ilícitos de traição, corrupção e outros crimes. O juízo competente é um tribunal “ad-hoc”, ou especial, no caso composto da câmara baixa e do senado, com competências específicas. Contudo, o fato de o tribunal ser, noutra capacidade, um órgão político, não faz com que o julgamento do impedimento possa ser feito sem cumprimento da legislação de regência, ao livre alvedrio dos senadores. Tanto isso é fato que, naquele país, da decisão do senado cabe recurso à última instância do poder judiciário.
No Brasil, não é diferente. Nosso instituto foi literalmente adaptado daquele americano, como fizeram muitas repúblicas. No País, a Constituição define como crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição e, especialmente,
i. A existência da União;
ii. O livre exercício dos poderes constitucionais;
iii. O exercício dos direitos políticos, individuais e sociais;
iv. A segurança interna do País;
v. A probidade na administração;
vi. A lei orçamentária; e
vii. O cumprimento das leis e das decisões judiciais.
Trata, portanto, a Constituição de elencar os atentados contra direitos Individuais, sociais e coletivos, que são sempre definidos e assegurados pela lei. Não se pode pretender examinar pretensas violações de tais direitos à margem de um processo legal, que inclua procedimentos fundamentais assegurados pela Civilização, como o do contraditório e o da plenitude da defesa.
Também no Brasil, o Senado é investido de poderes judicantes ad hoc, o que não significa que poderá decidir por critérios outros que os estritamente legais. Também no Brasil, a Constituição determina que a lei não poderá excluir da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito, o que confirma o julgamento institucional pelo Senado balizado pela ordem jurídica e a possibilidade de recurso ao Supremo Tribunal Federal.
Infelizmente, no Brasil, o instituto da destituição tem sido frequentemente desvirtuado por interesses políticos de diversas inspirações, que visam alterar o resultado do voto popular e do enunciado basilar da Constituição no sentido de que todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente.
Historicamente, tivemos muitos exemplos dessas tentativas espúrias. Getúlio Vargas sofreu um processo de impedimento, da mesma forma que Collor de Mello, Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso, Luiz Inácio Lula da Silva e, agora, a Dilma Roussef. Em todos estes casos, pretendeu-se utilizar um pretenso processo político como instrumento hábil para alterar a vontade popular.
Trata-se de erro gravíssimo, que compromete a essência da própria democracia. Ao invocar a legitimidade de um processo espúrio, na realidade atenta-se contra os direitos que a própria Constituição procura tutelar, como o livre exercício dos poderes constituídos e dos direitos políticos, assim como a segurança interna do País.
Forças das trevas procuram, na realidade, com os processos de impedimento infundados, desestabilizar os diversos governos, deixando-os sem condições funcionais e lançando, por conseguinte, o Brasil numa grande crise, para forçar a saída do presidente indesejado, por que meio for. Trata-se na realidade de um abuso de processo, como é definida a situação no direito anglo-saxônico.
Na China, aproximadamente 500 antes de Cristo, o grande filósofo Confúcio, ao elencar as 10 categorias de maldade pública, já incluía dentre elas a instigação ao caos interno. É o que sucede hoje no Brasil.
Tudo por um chamado “juízo político”.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).