A iniciativa de formação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) foi concebida pelos Estados Unidos e formatada no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), pacto que trouxe enormes vantagens comerciais aos agentes comerciais, industriais e agrícolas dos EUA, bem como extraordinária dependência econômica, financeira e política do México àquele país.
As conseqüências dos prováveis efeitos nefastos da ALCA têm sido objeto de muitas análises, mas pouco se tem escrito sobre os aspectos legais da iniciativa e suas repercussões para o nosso país. É este aspecto que é discutido aqui.
Na hierarquia das normas no direito constitucional doméstico dos EUA, há dois patamares para classificar os tratados internacionais. O primeiro diz respeito à sua origem – Congresso (denominados “tratados”) ou Poder Executivo (chamados “acordo executivo presidencial”). O segundo refere-se à exeqüibilidade do acordo. Os tratados internacionais podem ser auto-exeqüíveis, que não necessitam de legislação doméstica que os implementem, ou não automaticamente exeqüíveis, que carecem de implementação legislativa. De modo geral, todos os tratados internacionais assinados pelos EUA nos últimos 25 anos têm necessitado de implementação legislativa. Os acordos comerciais não fogem à regra, já que grandes interesses privados e públicos estão envolvidos.
Um exemplo dramático refere-se ao Acordo de Estabelecimento da Organização Mundial do Comércio (OMC). Os Estados signatários comprometeram-se a aceitar a totalidade dos tratados-objeto do Acordo e obrigaram-se a assegurar a conformidade de suas leis, regulamentos e procedimentos administrativos com os dispositivos. Mas a legislação de implementação interna nos EUA estabelece que “nenhum dispositivo de qualquer dos Acordos da Rodada Uruguai, nem a aplicação de qualquer tal dispositivo a qualquer pessoa ou circunstância, que seja inconsistente com qualquer lei dos EUA, deverão produzir efeitos”. O mesmo ocorre com a legislação federal de implementação do NAFTA.
Estes dispositivos são flagrantemente ilegais, pois violam normas específicas dos tratados e provisões da Convenção de Viena. Da mesma forma, a legislação interna de imigração dos EUA, formidável barreira horizontal de acesso a prestadores de serviços dos países signatários de uma possível ALCA, prevalecerá sobre quaisquer promessas ou dispositivos do acordo.
A legislação dos EUA sobre a autorização dada pelo Congresso ao Poder Executivo para a negociação de tratados internacionais, conhecida como Fast-track Act, denegou que o acordo da ALCA tenha efeito auto-exeqüível. A lei de promoção comercial determina que o acordo seja apresentado para ratificação e legislação específica de implementação pelo Congresso. Assim, tudo indica que deverá ocorrer na ALCA o mesmo havido com outros acordos. O objetivo dos EUA é assegurar sua observância absoluta pelos outros países, mas não por si.
Outra idiossincrasia faz com que a questão da hierarquia das normas torne-se ainda mais preocupante no caso da ALCA. A minuta do acordo dispõe que, no caso de conflito entre os dispositivos deste e os do Acordo da OMC, prevalecerão as normas do acordo da ALCA. Esta situação acarretaria uma inversão na hierarquia das normas – nas amplas matérias tratadas no âmbito do acordo da ALCA, a hierarquia superior será das leis dos EUA, situando-se num segundo patamar as normas da ALCA, e por fim as regras da OMC. A correta estrutura jurídica, face ao direito internacional e dos mais básicos princípios de eqüidade, seria que as normas da OMC prevalecessem sobre as da ALCA e estas sobre o direito doméstico dos países signatários do Acordo.
As linhas gerais da proposta dos EUA para a ALCA, anunciadas em 11/02/2003, chamaram a atenção pelo caráter acanhado, cosmético e anódino – e também pelo tratamento discriminatório às partes.
O fundamento básico e arcabouço legal do regime jurídico do comércio internacional é justamente o princípio da não discriminação, consagrado no Artigo 1 do tratado do GATT de 1947, ainda em vigor, pela chamada cláusula da nação mais favorecida – segundo a qual qualquer vantagem, favor, privilégio ou imunidade concedida por um país signatário do tratado, a qualquer produto de um país nas mesmas condições, será incondicionalmente estendida aos demais signatários. Com a criação da OMC em 1995, a norma passou a valer para os seus 146 Estados-membros.
O que a OMC permite, nos casos de pactos regionais de livre comércio, como a ALCA, é a discriminação exógena – tratamento diferenciado aos não signatários. Mas não contempla a discriminação endógena, introduzida pelos EUA pela primeira vez na história. A oferta agrícola, por exemplo, dá tratamento tarifário isento a 85% das exportações do Mercado Comum do Caribe (Caricom); 64% daquelas dos países da América Central; 68% das procedentes dos países do Pacto Andino; e 50% àquelas dos países do Mercosul. O mesmo acontece com a oferta de bens industriais. E a discriminação poderá ser agravada, quando da oferta final dos EUA, pela tarificação diferenciada de bens e produtos, de forma que o país mais competitivo tenha tarifas mais elevadas e o menos competitivo, tarifas mais baixas.
Arbitragem anacrônica
O sistema de arbitragem proposto para a ALCA foi fundado no vigente na OMC, com desastrosos resultados para a prestação jurisdicional do direito do comércio internacional, bem como para os países em desenvolvimento. Tanto que na ocasião da Rodada Doha, muitos países apresentaram propostas de modificações substanciais em todos os 24 artigos e 4 anexos ao Entendimento sobre Resolução de Disputas (ERD) da OMC.
Na ALCA, incorporam-se praticamente todos os vícios da OMC. Redigido em linguagem não jurídica, o capítulo de arbitragem do acordo da ALCA dá como jurisdição, denominada “escopo de aplicação” (sic), a resolução das disputas entre as partes com relação à interpretação, aplicação (sic) ou não observância do acordo da ALCA. O direito de ação é restrito aos Estados signatários, expressamente vedado o direito da ação a pessoas físicas ou jurídicas de direito privado.
O artigo 4 do capítulo de arbitragem manda aplicar às disputas os princípios de direito internacional, bem como os de boa fé, confidencialidade, celeridade, economia processual, acesso efetivo, tratamento especial e diferencial, e equilíbrio entre direitos e obrigações das partes. Os outros princípios não são definidos no texto, o que poderá dar ensejo a grandes injustiças. Por exemplo, na OMC, a “economia processual” é muito controversa, por ter significado, na prática, omissão de julgar um dos pontos apresentados por uma das partes, quase sempre um país em desenvolvimento.
Cria-se também o foro privilegiado para as questões atinentes ao acordo da ALCA. Quanto às demais, poderão ser submetidas tanto ao sistema de resolução de disputas da OMC quanto ao da ALCA, à exclusão do outro. Como a maior parte das matérias substantivas, senão a totalidade, deverá ser de jurisdição de ambos os sistemas, haverá discrepância na regulamentação processualística de ambos, o que implicará numa relação hierárquica de credibilidade dentre eles.
É estabelecido também um sistema confidencial de consultas, área em que se dá a maior parte das derrotas dos países em desenvolvimento na OMC. O mecanismo não transparente implica na falta de controle democrático dos atos de agentes governamentais dos países em desenvolvimento, devido ao sigilo nas concessões feitas.
São propostos um painel de primeira instância e outro de apelação. O primeiro, seguindo o vício consagrado na OMC, terá caráter não permanente e será nomeado pelo Secretariado, que na OMC é controlado pelas potências hegemônicas. Como na OMC, haverá uma lista de árbitros de primeira instância, mas naquela organização estes normalmente não são nomeados, em detrimento dos amigos dos componentes da Divisão Jurídica do Secretariado, com resultados previsíveis.
O grau de apelação no sistema de arbitragem da ALCA terá um corpo permanente de sete árbitros, indicados com mandato de quatro anos, prorrogável por igual período. A jurisdição de segunda instância será sobre questões de direito, apenas. O painel de segunda instância decidirá por maioria de votos. O painel do grau de apelação não terá poderes para remeter os autos para o painel de primeira instância, convertendo o julgamento em diligência, com o objetivo de complementar ou esclarecer questão de fato. O problema é que quando o caso sobe para o grau de apelação, o painel original de árbitros não mais existirá.
As regras processuais são igualmente falhas. O sistema de arbitragem admite o litisconsórcio ativo, mas é silente quanto ao litisconsórcio passivo. Segundo o artigo 19 do capítulo de arbitragem, “quando uma parte não é uma parte na disputa, ela poderá participar como terceira parte” (sic). É o mesmo da OMC, amplamente criticado. A questão das regras de prova e evidência, absolutamente deficiente na OMC, foi copiada pela ALCA.
O sistema de arbitragem peca por omissões processuais fundamentais para qualquer sistema jurisdicional: não possui instrumento processual para o tratamento de preliminares como, inter alia, carência de ação, ilegitimidade de parte, incompetência de foro ou conflito de tratados. A experiência da OMC demonstrou que tais omissões trazem alto custo para os países em desenvolvimento, no que toca à derrogação de direitos reconhecidos por outros tratados. Como o sistema não admite o instituto da reconvenção, pode acontecer de dois casos conexos, com painéis diversos e termos de referência semelhantes, terem resultados desencontrados.
O sistema de arbitragem da ALCA não enseja laudos ou decisões auto-exeqüíveis. Esta falha gerou graves problemas no âmbito multilateral, onde a maioria das decisões tem problemas de execução ou implementação. Esta sistemática importada da OMC penaliza a corrente saudável de comércio entre dois países envolvidos numa disputa, além de não ter execução específica na remoção da medida julgada ilegal ou inconsistente com a ordem jurídica de regência da atividade afetada.
Vale ainda observar que a formatação do sistema de arbitragem da ALCA foi quase, senão totalmente, de responsabilidade dos EUA. Assim, ainda que os argumentos macroeconômicos fossem favoráveis ao ingresso do Brasil na ALCA (e não o são), apenas a situação jurídica seria decisiva a absolutamente desaconselhar tão temerária aventura.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).