1.1. Fui convidado hoje para discutir o importante tema “Integração econômica: Mercosul versus Alca”. Neste momento específico da história, a integração da economia regional tem importância muito maior para o Brasil do que em qualquer outra época, ampliada pelo contexto da liberalização do comércio unilateral da nossa economia; a relevância da subvalorização da moeda para o sucesso do plano Real; e as conseqüências dos acordos para a agricultura brasileira, bem como para o setor das indústrias e para o setor de serviços. Minha apresentação consistirá em:

I- Esta introdução;
II- Histórico do Comércio Multilateral;

III- Organização Mundial do Comércio – OMC e Mercosul;

IV- OMC e o Acordo de Livre Comércio da América do Norte – Nafta;
V- As Armadilhas na Associação de Livre Comércio das Américas – Alca;

VI- Conclusão: A Alca é um péssimo negócio para o Mercosul.

2.1. O domínio do comércio internacional sempre foi o mais importante objetivo estratégico das nações. Guerras foram travadas em razão disso durante milhares de anos, e milhões de pessoas sucumbiram como resultado direto. Numa perspectiva histórica, a preponderância no comércio internacional foi freqüentemente a causa de prosperidade interna das nações. Esta situação permaneceu inalterada durante séculos e, mesmo durante a Guerra Fria, a política comercial foi concebida, embora nem sempre claramente, como um instrumento de política externa para atingir os mesmos objetivos hegemônicos que sempre foram perseguidos vigorosamente.

2.2. No Novo Mundo, a liberdade econômica e o livre comércio foram os principais fatores de motivação da independência dos Estados Unidos do Reino Unido. Muitos dos primeiros líderes americanos, inclusive Thomas Jefferson e James Madison, estavam familiarizados com os fortes ideais de Adam Smith em favor do livre comércio e contra o mercantilismo. De fato, imediatamente após a declaração de independência, os americanos lançaram uma iniciativa diplomática empenhando-se para a realização do livre comércio e acesso recíproco a mercados estrangeiros.[1]

2.3. Desgraçadamente, as diferentes circunstâncias que levaram o Brasil à independência, em 1822, impediram um claro corte do mercantilismo, tal como no caso americano. Na verdade, a independência do Brasil foi mais uma manobra preventiva de um príncipe da coroa portuguesa, do que uma ação afirmativa com uma clara agenda estratégica. Essa lamentável situação levou o Brasil a aceitar o abominável Tratado de Comércio e Navegação entre Inglaterra e Portugal, assinado em 1810 [2] por Portugal, sob coação, durante as Guerras Napoleônicas. Os acordos mencionados criaram um monopólio dos bens manufaturados ingleses no Brasil; ao mesmo tempo criaram restrições para o acesso de bens brasileiros à Inglaterra.[3] Essas austeras condições vingaram até 1842, prazo final estabelecido pelo tratado, negociado por D. Pedro I e assinado em 1827, como parte dos esforços diplomáticos para o reconhecimento da independência brasileira. Em Portugal, tal tratado terminou em 1835, mas vigorou no Brasil até 1842, o que representou a mais importante razão da diferença, entre o desenvolvimento industrial em particular e o crescimento econômico em geral, entre o Brasil e os EUA desde 1776 até 1842. [4]

2.4. Em contrapartida, os americanos, a partir da independência, perseguiram agressivamente sua agenda comercial até que, em 1947, seguindo a Segunda Guerra Mundial, como parte da nova ordem econômica, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio – Gatt, amplamente inspirado pelos Estados Unidos, foi assinado por 23 países, inclusive pelo Brasil. [5] O Gatt foi e ainda é, sob a forma da Organização Mundial do Comércio – OMC, [6] o único acordo multilateral e foro competente para a resolução de controvérsias comerciais entre Estados soberanos do mundo. O objetivo do Gatt foi instaurar uma ordem legal na caótica situação do comércio internacional, bem como liberalizar o comércio mundial, objetivo este que interessava aos EUA naquele momento histórico específico, em face de sua considerável vantagem competitiva sobre qualquer país do planeta, como um resultado do mundo destruído pelo terrível conflito militar.

2.5. Esta situação, entretanto, mudou gradualmente com o declínio da economia da competitividade dos EUA, na medida em que outros países, particularmente o Japão e países-membros da União Européia, recompuseram-se da destruição causada pela guerra. Com o fim da Rodada Tóquio [7] do Gatt, concluída em 1979, os EUA sentiram não apenas a forte competição acima referida, mas também ressetiram-se das conseqüências da segunda crise do petróleo, da crise comercial bancária internacional e da crise de liquidez dos países em desenvolvimento. Nesta ocasião, os EUA incrementaram sua postura de intimidação em relação a seus sócios comerciais através, inter-alia , do desenvolvimento de um mecanismo eufemisticamente denominado de “acordos voluntários de restrição” (VRAs), com o qual países soberanos “voluntariamente” desistiriam de seus direitos de exportar para os EUA, aceitando quotas não oficiais impostas pelos americanos, contrárias ao Direito Internacional.

2.6. A extensão dessas pressões era tanta que, pela primeira vez, um país outro que os EUA, neste caso o Japão, tomou a iniciativa de iniciar uma nova Rodada, a chamada Rodada Uruguai, que começou em 1986. Desde o início da Rodada, os EUA insistiram na inclusão na estrutura do Gatt, das chamadas “áreas novas”, compreendendo serviços em geral e, inter-alia, bancário, investimentos, tecnologia, telecomunicações e profissões regulamentadas, especificamente. O Brasil, juntamente com a Índia, liderou o Grupo dos Dez, [8] opondo algumas iniciativas que tinham como base:

a.) a ênfase nos serviços desviaria a atenção das resoluções das tradicionais disputas comerciais;

b.) os países em desenvolvimento se tornariam compradores, e não fornecedores dos serviços; e

c.) os países em desenvolvimento tornar-se-iam involuntariamente compradores de tecnologia não necessariamente adequadas à sua realidade. [9]

2.7. Depois da obstinada resistência de aproximadamente três anos, chegou-se a uma solução negociada entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento ao cabo de que alguns setores tradicionais, como agricultura e têxteis (sic), de maior importância para os países em desenvolvimento, seriam incluídos no escopo da Rodada Uruguai, junto com o tratamento de subsídios e uma intensificação geral das regras de Direito no comércio internacional. O último certamente viria para beneficiar a todos, mas principalmente os países em desenvolvimento, sistematicamente vítimas da ação arbitrária por parte da maioria dos parceiros comerciais.

2.8. Todavia, dois anos da conclusão da Rodada do Uruguai e da criação da OMC, as motivações dos países do Grupo dos Dez permanecem ainda válidas, sendo um desafio a ser enfrentado.
3.1. A OMC foi criada em 31 de dezembro de 1994, como um resultado direto da Rodada Uruguai. Fontes do Gatt, Banco Mundial e OCDE estimam que o comércio mundial crescerá anualmente US$ 755 bilhões até o ano 2002, como conseqüência da liberalização do comércio promovido pela Rodada [10], colocando os países desenvolvidos como um dos maiores vencedores da Rodada Uruguai, com 64% dos benefícios diretos, e os países em desenvolvimento com 36%. Tais concessões, no entanto, foram feitas pelos países em desenvolvimento na esperança de que benefícios indiretos, como a inclusão no Gatt de setores tradicionais da agricultura e têxtil, assim como o encontro das questões dos subsídios, bem como a aplicação das regras jurídicas no comércio internacional, poderiam, a longo prazo, compensar as perdas a curto prazo.

3.2. É claro que os negociadores dos países desenvolvidos geralmente favoreceram os objetivos de médio prazo na manutenção ou no aumento das vantagens comerciais comparativas existentes da época, porque estavam acostumados não somente a modificar as regras do jogo a qualquer momento, mas a evitar a observância de regras menos palatáveis. Portanto, o advento da OMC representou uma era de esperança para os países em desenvolvimento que, com grande entusiasmo unilateral, liberalizaram suas tarifas acima dos limites aceitos na Rodada Uruguai [11]. Isto ocorreu em tais dimensões que, hoje, os 20 países mais liberais em termos de comércio mundial [12] são países em desenvolvimento, seguidos pela Alemanha, em 21º lugar, pelos EUA em 25º lugar, depois da Colômbia, Grécia e Índia; e pelo Japão com a 28º colocação, precedidas por Argentina e Brasil . [13]

3.3. Em concomitância com a conclusão da Rodada Uruguai, o Mercosul demonstrou ser um sucesso, tendo dobrado o comércio interno dentro em três anos. [14] A razão para tal está bem clara. Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai obtiveram sucesso na criação de uma zona de livre comércio livre de subsídios onde os países-membro podem colocar seus produtos, particularmente mercadorias, sem qualquer interferência da prática de preços distorcivos mantidos pelos Estados Unidos, Canadá, Japão, Coréia e União Européia, que juntos, gastam mais de US$ 500 bilhões por ano em subsídios apenas no setor agrícola. A eliminação de tarifas internas em 1995 também alavancou o setor industrial e de serviços nos respectivos países, que tiverem suas economias em crescimento, previamente impossibilitado pela atual situação perversa do comércio multilateral.

3.4. Em 1º de janeiro de 1995, a Tarifa Externa Comum do Mercosul – TEC passou a vigorar com uma média de 14%, aplicáveis aos países-membros numa base consistente e uniforme em relação ao comércio com terceiros. A TEC é aplicada com base percentuais, de acordo com com a terminologia denominada Nomeclatura Comum do Mercosul – NCM. Barreiras não tarifárias foram identificadas e estão no processo contínuo de serem eliminadas, controladas por um grupo especial, a Comissão Comercial do? Mercosul. Exceções à TEC foram limitados em 300 itens por país (o Paraguai possui 399) até 1º de janeiro de 2001. Alguns setores foram submetidos a tratamento especial, como automobilístico, informática, telecomunicações e açúcar. [15]

3.5. Acordos regionais de comércio como o Mercosul e o Nafta foram criados dentro das regras da OMC. A Rodada Uruguai esclareceu e fortaleceu o artigo 24 do Gatt/1947, que dispõe sobre regras e disciplinas na unificação de aduaneira e de zonas livres de comércio. Alguns dispositivos, no entanto, permanecem ainda obscuros e lacunosos, necessitando-se de maior transparência nos acordos regionais de comércio, bem como de sua fiscalização coletiva, no futuro, por parte da OMC. Desde a criação da organização, em 1947, 109 acordos de comércio foram ratificados pelo Gatt, sendo que 33 deles efetuados a partir de 1990. [16]
4.1. Ao final da Rodada Uruguai, as negociações se tornaram mais difíceis entre Japão, a União Européia e os EUA, e mais do que uma vez, duvidou-se pudesse a Rodada ser concluída com sucesso. Tais dificuldades ocorreram devido ao fato de que os europeus e os japoneses, pela primeira vez, resistiram efetivamente às pressões dos EUA pela manutenção de sua posição hegemônica no comércio mundial. Nesse momento, houve uma radical mudança da postura dos EUA na formulação da política comercial, abandonando o tradicionalmente favorecido multilateralismo (Gatt), pelo regionalismo. [17] Anteriormente, não se admitia matérias comerciais fora do multilateralismo [18]. As primeiras indicações [19] desta situação vieram à tona quando os EUA renegaram os mesmos propósitos que tinham anteriormente apoiado durante o início da Rodada, como a liberalização do setor bancário e das telecomunicações, e questionaram suas próprias propostas relacionadas ao sistema de resolução de disputas, aceitas pela OMC. Para os americanos, o poder dividido na OMC provou-se longe de aceitável. “Os americanos querem saber quanto é possível ganhar com a nova ordem comercial no mundo”, diz Business Week, direta e candidamente. [20]

4.2. No mesmo momento em que foi concluída a Rodada Uruguai, o Nafta entrou em vigor [21] com uma história totalmente diferente em relação às negociações prévias e à prevalência dos interesses dos EUA. Canadá e México, enquanto parceiros comerciais dentro do Nafta, mal estavam em condições de resistir às intenções hegemônicas dos EUA. O comércio com os EUA representa cerca de 70% e 80%, respectivamente, do comércio externo do Canadá e do México. Em 1992, o México importou US$ 37 bilhões dos EUA e exportou US$ 32 bilhões, gerando um superávit de US$ 5 bilhões, em um ano no qual a balança comercial americana teve um déficit de US$ 90 bilhões. Para o México, as políticas de subsídios agrícolas do Canadá e EUA não foram desastrosas, já que o México é grande importador de produtos agrícolas. Em contrapartida, para os EUA e Canadá, o México, país populoso, é um consumidor bastante atraente para os produtos agrícolas [22], de colocação cada vez mais difícil no mercado mundial, devido ao extensivo emprego de subsídios praticado por outros parceiros comerciais, notadamente pela União Européia. [23]

4.3. Durante as negociações, os EUA obtiveram do México a total abertura de seu mercado de serviços, enquanto mantiveram fechado o mercado norte-americano por meio de barreiras horizontais na livre circulação de prestadores de serviços, o que estabeleceu, inter-alia, um indigno sistema de quotas (sic) aos cidadãos mexicanos. [24] O mercado mundial de serviços é estimado em aproximadamente US$ 12 trilhões, ou mais de 60% do total do comércio mundial. [25] O setor se serviços emprega três-quartos da força de trabalho dos EUA, gerando 68% do Produto Interno Bruto – PIB. Os EUA são os maiores exportadores de serviços do mundo e este é um dos setores mais competitivos da economia norte-americana. Canadá e México são respectivamente o primeiro e o terceiro maiores importadores de serviços norte-americanos. O domínio no setor de serviços mexicano, estimado em US$ 146 bilhões, foi um dos objetivos dos negociadores americanos no acordo do Nafta. [26]

4.4. As negociações do Nafta conduzidas pelo México, através de um governo notoriamente incompetente e corrupto, caracterizaram-se “pela aceitação virtual de todas as exigências e por fazer virtualmente todas as concessões.” [27] Como resultado do modelo do Nafta, o México se tornou, pelo menos no sentido comercial, um Estado cliente dos EUA, designado a comprar serviços, produtos industriais e agrícolas, gerar enormes déficits comerciais a serem financiados com as especulações mutuadas pelo seu setor financeiro. Esta bizarra situação causou um enorme déficit comercial acumulado pelo México em 1994 no valor de US$ 19 bilhões, [28] que causou àquele país uma crise de liquidez no início de 1995 e a massiva desvalorização do peso. Isto resultou num pacote de resgate financeiro imprecedente, na magnitude de US$ 50 bilhões, quase equivalente ao histórico Plano Marshall, o qual foi arrumado pelos EUA para ser dado ao México, de tal forma que pudesse pagar os irresponsáveis bancos americanos que assumiram o extraordinário risco de crédito [29]. O México, claro, terá que pagar a conta no final e há dúvidas se o país estará em posição para sequer honrar os juros decorrentes. [30]

4.5. Os EUA têm sistematicamente tentado aplicar suas leis extraterritorialmente, o que não é somente bizarro ou abusivo, mas também contrário ao Direito Internacional, e achou no Nafta uma excelente oportunidade para alcançar este objetivo de modo muito vantajoso. O Nafta proporcionou aos EUA um grande número de vantagens estratégicas, não somente no comércio de mercadorias e serviços, mas estendeu ao México conceitos americanos de lidar com investimentos (incluindo seguro em capital estrangeiro), propriedade intelectual, proteção ao abuso do poder econômico, Direito do Trabalho, Direito Ambiental, tráfico de drogas, imigração ilegal e até a administração da Justiça, tudo sobre o pretexto da liberalização do comércio. O eufemismo utilizado pelos americanos para definir esta situação foi “convergência de valores”. [31]

4.6. Ademais, as 2.000 páginas do acordo do Nafta empenharam-se em proteger, da concorrência com terceiros países, as vantagens obtidas pelos EUA do México através desse revoltante acordo que dedicou aproximadamente 10% ou 200 páginas para as regras de origem, mecanismo reconhecido hoje como a tecnologia de ponta do protecionismo.

4.7. Tendo alcançado tantas vantagens, os articuladores da politíca americana decidiram, obviamente, que as mesmas condições draconianas, se aplicadas consistentemente na América Latina, tornar-se-iam muito mais lucrativas para os EUA. [32] No entanto, no primeiro ano do Nafta, os produtos americanos exportados para o Canadá e México cresceram mais que o dobro das exportações americanas para o resto do mundo, contabilizando 50% do total dos ganhos americanos em exportações em 1994. [33] Com objetivo de expandir esta situação para o resto da América Latina, os EUA adotaram oficialmente o modelo “cubo e raio”, no qual os Estados Unidos seriam o cubo e os pobres países da América Latina os raios. Este modelo foi incorporado na Iniciativa para as Américas, pelo governo dos EUA, o que resultou num acordo hemisférico de princípios assinado em 1994 para criação da Alca no ano de 2005. [34]

4.8. Foi a partir de então que o secretariado da OMC tomou uma imprecedente medida de advertência, numa recente publicação oficial, em reflexão apósita, sobre os perigos do modelo “cubo e raio”, no sentido de que sua essência é sempre a mesma, a qual dita que os serviços e mercadorias (e talvez trabalho e capital) fluam mais livremente entre os raios e cubo do que apenas entre os raios. Além disso, o secretariado da OMC também adverte que, nestes casos, há uma tendência para a administração do comércio sensível com cada um dos extremos, reduzindo o setor sempre que o parceiro comercial é nele mais competitivo. [35] Até mesmo nos EUA este modelo foi acusado de representar “uma nova era de imperialismo”. [36] Mais ainda, de acordo com Peter Drucker, a tentativa dos EUA de “moldar a economia mundial segundo concepções morais, legais e econômicas americanas está voltada ao fracasso. Em uma economia global cujos protagonistas se definem quase de um dia para o outro não há nenhuma possibilidade de domínio exclusivo por parte de qualquer potência econômica.” [37]. Não obstante tais advertências, perseveram os EUA em tal intento, como veremos a seguir.
5.1. Para um país como o Brasil, a adesão ao Nafta ou ao Alca baseado no modelo “cubo e raios”, no geral, e sobre as condições inflexíveis impostas ao México, em particular [38], seria um desastre na ordem econômica e social. Esse desastre ocorreria certamente no setor de serviços, uma vez que representa mais de 50% do PIB brasileiro, devido ao movimento de pessoas, essencial para os fornecedores de serviços [39], não ser assegurado pelo Nafta [40] para os países “raios”. Como foi advertido pela OMC, o fluxo entre os raios e cubo limitariam a relação entre os raios e serviria como um enorme incentivo para a fuga de capitais e presença comercial no cubo. Empresas de outras partes do mundo se interessariam em estabelecer presença comercial no cubo, mais do que nos raios, mesmo que devam relacionar-se com os raios. O cubo forneceria o setor financeiro para os raios. O setor de educação nos raios seria muito afetado, pelo menos no que tange às áreas de administração de negócios e financeira, pois haveria uma força centrífuga atraindo para o cubo pelas mesmas razões acima expostas. A agricultura, pelo menos no Brasil e na Argentina, seria destruída pelos US$ 200 bilhões, de subsídios praticados pelos EUA e Canadá, e tal trágico fim certamente incluiria o setor açucareiro no Brasil, que empregamais de 1 milhão de trabalhadores rurais. De fato, não se trata de perspectiva muito atraente!!! [41]

5.2. No entanto, um Nafta aumentado não apresentaria oportunidades para aumento de exportação da América Latina? A resposta é dada por um advogado americano, especialista em comércio internacional: “Um Nafta aumentado provavelmente não levará ao incremento de exportações da América Latina aos EUA, exceto para as áreas têxteis e de vestuário, onde as regras restritivas do Nafta para os regimes de origem podem conduzir exatamente a este tipo de anomalia comercial. Para os produtos industriais, geralmente, as tarifas dos Estados Unidos são comparativamente mais baixas e a perspectiva de uma preferência em favor das exportações regionais sobre as exportação não regionais é remota.” [42]

5.3. Para a formatação da Alca, pretendem os EUA utilizar a estrutura do Nafta dentro da seguinte agenda afirmativa: [43]

I. abertura dos mercados de serviços dos demais países;
II. o acesso ao mercado de mercadorias com tarifas mais baixas;
III. a manutenção de regras de origem que dificultem o acesso de terceiros países;

IV. a imposição de critérios legislativos e culturais próprios, com expressiva renúncia à soberania por parte dos outros membros; e

v. uma “colheita precoce” de todos os benefícios acima.

5.4. Na agenda defensiva dos EUA para as negociações da Alca consta o seguinte:

I. manutenção do regime fechado de serviços através de barreiras horizontais;

II. manutenção do regime de subsídios agrícolas;
III. manutenção da estrutura legislativa unilateral situada acima dos tratados internacionais, em violação ao Direito Internacional; e

IV. só fazer concessões dilatadas no futuro.

5.5. A perspectiva da obtenção de tais objetivos infames deixa profundamente excitados tanto estrategistas como homens de negócios e agentes governamentais americanos. Assim, o historiador radical americano, Walter A. McDougall, importante ideólogo do imperialismo, chamou o Nafta de forma convencional de se assegurar mercados cativos para a expansão comercial e de “o grande vôo da águia” [44]. Da mesma forma, o propósito exclusionário e dominador das negociações fica claro com as declarações de um dos diretores da Caterpillar, fazendo lobby para a aprovação da autorização fast-track no Congresso americano: “As pessoas parecem não entender que, se tivéssemos um acordo de comércio, poderíamos vender todos os nossos produtos sem impostos, enquanto nossos concorrentes japoneses e europeus estariam enfrentando uma tarifa de 11%.” [45] Por sua vez, a Senhora Charlene Barshefsky, funcionária responsável pelo United State Trade Representative – USTR, o escritório comercial americano e que tem nível de ministra, comentou pública e despudoradamente, em Washington, que a Alca seria um tremendo almoço grátis para os EUA. [46]

5.6. Dentro da perspectiva legal, há outro fator contra a inserção na Alca pela substancial razão de que, nos EUA, tratados como o Nafta e mesmo aqueles derivados da Rodada Uruguai e envolvendo a OMC estão situados abaixo da lei federal norte-americana, na hierarquia das normas. Na América Latina, como na Europa e na maioria dos países do mundo, os tratados estão situados acima das leis locais e são aplicáveis no respectivo território [47]. Isto não ocorre nos EUA. De fato, já que as leis daquele país somente dão aplicabilidade aos acordos auto-exeqüíveis e isto exclui os acordos do Nafta e da Gatt, “existe a possibilidade de que as cortes dos Estados Unidos possam chegar a decisão contrária ao Direito Internacional, e que tal decisão possa causar violação por parte dos EUA de suas obrigações internacionais” [48]. Em tal caso, o relevante tribunal americano estará adstrito a cumprir as normas locais.

5.7. Além do mais, a legislação interna americana no tocante à implementação dos tratados da Rodada do Uruguai estabelece na seção 102 (a) que ” não deverá ter efeito nenhum dispositivo de quaisquer acordos da Rodada Uruguai, nem aplicações de qualquer de seus dispositivos a qualquer pessoa ou circunstância, que seja incompatível com a lei dos Estados Unidos.” [49] Semelhantemente, em conexão com o Nafta, a lei federal dos EUA estabelece na seção 102 (a) (1) da legislação de regência que “nenhum dispositivo do Acordo nem aplicações de qualquer dispositivo a qualquer pessoa ou circunstância, que seja incompátivel com a lei dos Estados Unidos, deverá ter efeito.” [50] Conseqüentemente, o Nafta não é necessariamente exeqüível nos EUA, mas certamente o é nos outros territórios signatários. Em um mundo que busca a transparência e a prevalência das leis no comércio internacional, assim como nos negócios internacionais, isto é claramente inadmissível e permite a imediata presunção de má fé em qualquer acordo de comércio negociado pelo governo americano. [51]

5.8. Naturalmente, o Itamaraty, o experiente Ministério de Relações Exteriores do Brasil, percebeu as complicações de uma Alca modelada pelo Nafta e procurou por alternativas para se atingir o livre comércio no hemisfério sem cair na cilada do Nafta. Uma dessas alternativas é a criação da Associação do Livre Comércio na América do Sul – Safta, um conceito meritório. Esta posição foi percebida pelos negociadores americanos e tornou-se rapidamente notória. [52] Há pouco mais de um ano denunciei, pela primeira vez, que exercícios acadêmicos estavam sendo discutidos nos EUA sobre como isolar o Brasil nas negociações da Alca. [53] Uma alternativa era o chamado tratamento diferencial, oferecendo vantagens específicas a alguns países para atraí-los ao Nafta.[54] Outra é que os EUA “encorajariam” o Brasil a retardar a redução de tarifas no âmbito multilateral para assim neutralizar a oposição interna brasileira à integração regional. Uma terceira consistiria em os EUA penalizarem o Brasil no comércio bilateral oferecendo a Alca como solução dos problemas. [55] Recentemente, a imprensa brasileira e internacional tem denuciado, à exaustão, a implementação, pelo governo dos EUA, de tais formulações acadêmicas, com o objetivo de, em desestabilizando o Mercosul, forçar o governo brasileiro a aceitar uma proposta comercial flagrantemente contrária à soberania e aos interesses nacionais.
6.1. A história dos EUA pode ser dividida em duas fases: a da expansão, que foi de 1776 até 1878, e a do imperialismo, que vai até os dias de hoje. Com o final da Guerra Fria, os estrategistas americanos elegeram o comércio internacional como forma de obtenção da hegemonia mundial. Para tanto, distanciaram-se do multilateralismo da OMC, passando para o regionalismo e fugindo da nova juridicidade do sistema multilateral para situações onde, bem a seu gosto, podem exercer o unilateralismo e o exercício arbitrário das próprias razões.

6.2. De modo geral, as credenciais dos EUA no tocante à observância do Direito Internacional são, neste século, de longe, as piores possíveis. Por outro lado, vale lembrar que o histórico de relações hemisféricas dos EUA é verdadeiramente repugnante. Em 1812, pretenderam anexar o Canadá e foram à guerra por tal intento, repetindo o feito em 1854. Posteriormente, em 1848, empreenderam uma guerra de conquista com o México, na qual substraíram metade do território daquele país. Em 1898, invadiram, inter-alia, Cuba e Porto Rico. Da Colômbia desmembraram um estado cliente, o Panamá, onde assentaram diversos títeres, entre os quais o general Noriega. Neste século, Nicarágua, Haiti, República Dominicana, Venezuela, El Salvador, Granada e Honduras foram objetos das atenções constantes dos EUA, todas em violação ao Direito Internacional. No século XIX, nos EUA se discutiu a anexação total do México e também a da Amazônia e, nos dias atuais um membro graduado do governo daquele país defende sua internacionalização. Ainda nos dias de hoje, o hemisfério é visto, pelos EUA, como o seu quintal e área de sua segurança nacional.

6.3. Se as credenciais históricas dos EUA para um pacto regional hemisférico são inexistentes, faltam igualmente as condições culturais comuns que permitam um alicerce sólido para a construção do edifício comum. Os EUA são um país que tem ideologia ao invés de cultura. Tal ideologia se apresenta sob quatro facetas:

I- o chauvinismo – nacionalismo exacerbado e repercussão nacional do individualismo obsessivo;

II- etnocentrismo – desconhecimento e insensibilidade para as especificidades culturais, econômicas, étnicas e sociais de terceiros;
III- unilateralismo – exercício arbitrário das próprias razões, desrespeito ao Direito Internacional.

IV- imperialismo – dominação de terceiros países; excessiva belicosidade; militarismo.

6.4. Do ponto de vista estritamente comercial, para países como o Brasil e a Argentina, a adesão à Alca formatada nos moldes do Nafta seria um desastre sem precedentes. Esse desastre seguramente ocorreria no setor de serviços, que representa mais de 50% do PIB brasileiro. O setor financeiro migraria em grande parte para os EUA, que passariam a ser o local mais atraente para a presença comercial de terceiros países. O setor agrícola seria destruído da noite para o dia, com a perda de milhões de empregos rurais. O sistema educacional entraria em colapso.

6.5. Não se alegue que uma Alca formatada no Nafta apresentaria oportunidades para aumento de nossas exportações. As tarifas dos EUA já são baixas o suficiente e, na média, a economia brasileira seria altamente prejudicada. Estrategicamente, a Alca representaria, para o Brasil, uma situação muito pior do que o infame Tratado de Comércio e Navegação celebrado em 1827 com a Inglaterra e que impediu a industrialização do país.

6.6. O conceito da Alca, formatada no Nafta, apresenta uma hipótese na qual o Mercosul, em geral, e o Brasil, em particular, não teriam nada a ganhar e tudo a perder e que, por conseguinte, merece o destino do lixo.