Dividi a apresentação de hoje da seguinte forma:
i) O Contencioso na OMC;
ii) As Derrotas do Brasil na OMC;
iii) O Itamaraty e o Comércio Exterior;
iv) O Itamaraty já vai à Guerra Comercial;
v) As Armadilhas da ALCA; e
vi) Conclusão: A ALCA é um Péssimo Negócio para o BrasilJá ao cabo da Rodada Uruguai do GATT, da qual resultou a OMC, uma ominosa análise do Banco Mundial advertia que os países desenvolvidos saíram vencedores das negociações, com 64% dos benefícios, contra apenas 36% atribuídos aos países em desenvolvimento. Para o Brasil, o quadro apresentava-se ainda pior, já que a incompetente e moribunda administração federal do Presidente Collor promovia uma abertura unilateral concedendo benefícios aos nossos parceiros comerciais sem que deles se exigisse contrapartidas de liberalização, como é usual nas negociações comerciais multilaterais. Como conseqüência, nos cinco anos seguintes à criação da OMC, o Brasil teve uma participação decrescente no comércio internacional e nossos produtos mais competitivos continuaram sem acesso aos mercados dos países desenvolvidos, enquanto seus produtos e serviços eram plena e crescentemente vendidos em território nacional.
Mais ainda, no mesmo período, o Brasil foi o país que mais e maiores derrotas sofreu no sistema de resolução de disputas da OMC, que havia sido recebido com grandes esperanças por parte dos países em desenvolvimento, as maiores vítimas da ação unilateral e do arbítrio no comércio internacional. De um modo geral, os países em desenvolvimento foram os grandes vencidos no contencioso da OMC, perdendo mais de dois terços das disputas. Os Estados Unidos da América (E.U.A.) prevaleceram em mais de 90% dos casos e a União Européia (UE) situa-se num patamar próximo. Tais vitórias não são coincidentais, já que o sistema foi criado e funciona apositamente para favorecer as potências hegemônicas.
De fato, nos autos da fé da OMC, os países em desenvolvimento são submetidos a uma sistemática processualística falha, grotesca e bizarra, em que não há um processo físico; não há nomenclatura jurídica adequada; não se admitem as questões preliminares; não se dá guarida a institutos jurídicos fundamentais, como a reconvenção; o direito à causa de pedir é limitado, já que condicionado à aprovação do objeto da ação pelo secretariado da OMC; não há publicidade dos atos processuais; não há regras completas a respeito de vários prazos processuais; não há um sistema de produção de provas; não há independência dos árbitros; há excessivos poderes atribuídos à divisão jurídica do secretariado da OMC; não é admitido o voto discordante ou vencido em separado; e não há transparência na atuação dos painéis e quanto à influência do secretariado sobre o seu desempenho. De fato, a divisão jurídica do secretariado da OMC, que na realidade influencia decisivamente o sistema de resolução de disputas, é controlada pelos países desenvolvidos.
Nas palavras de Cícero: “Cui bono?” A quem aproveita o sistema? Aos E.U.A., conforme depoimento da então Representante Comercial, Sra. Charlene Barshefsky, ao congresso daquele país em 20 de junho de 2000, quando alardeou com jactância que os EUA haviam prevalecido em 37 dos 35 casos em que estiveram envolvidos, ou mediante consultas, ou mediante decisões arbitrais. O desempenho da UE não fica atrás. Coerentemente, os E.U.A. afirmaram oficialmente que “as regras do sistema de resolução de disputas da OMC funcionaram muito bem”. Por sua vez, a UE declarou, também oficialmente, que o sistema de resolução de disputas da OMC “é um dos principais resultados da Rodada Uruguai, configurando-se elemento central a assegurar a estabilidade e a previsibilidade ao comércio multilateral”.
Esta situação de menoscabo da ordem jurídica e do estado de direito nas relações internacionais, para proporcionar a completa e eficiente espoliação dos países em desenvolvimento, é totalmente injustificável, mesmo para os sofistas do terceiro milênio. A percepção generalizada de tal fato pela opinião pública internacional, apesar da maciça campanha de propaganda promovida por certos países desenvolvidos, contribuiu decisivamente para a dramática perda de credibilidade da OMC. Um relatório preliminar da Comissão de Direitos Humanos da ONU chegou a afirmar que “para os países pobres do hemisfério sul, a OMC tornou-se um verdadeiro pesadelo”.
Por sua vez, o Brasil, derrotado em 75% dos casos, inclusive tendo sofrido o maior revés comercial da história do GATT e da OMC, nada apresentou de substância para a reforma do sistema de resolução de disputas, tendo inclusive altos representantes do Itamaraty declarado publicamente sua enorme satisfação com o seu funcionamento. Mas este tema ficará para o próximo segmento.
O Brasil tem sido o inequívoco campeão das derrotas no sistema de resolução de disputas da Organização Mundial do Comércio, tendo sucumbido em duas disputas contra o Canadá, na área da indústria aeronáutica; duas contra a União Européia (UE), no caso do leite e seus derivados e no caso dos frangos; e uma contra os Estados Unidos da América (E.U.A.), UE e Japão, no caso do regime automobilístico. Contra tais derrotas de escomunais proporções e graves implicações, o Brasil teve duas vitórias, uma apenas subsidiária no caso movido pela Venezuela contra os E.U.A., na questão dos padrões ambientais para a gasolina; e, a outra, contra as Filipinas, no caso do leite de coco, do qual o País é importador!
A gravidade das derrotas sofridas pelo Brasil é tanto maior porque são elas pertinentes a setores de fundamental importância para a sua economia, senão vejamos: i) a indústria aeronáutica é hoje a maior exportadora brasileira de produtos manufaturados; ii) a indústria automobilística, a maior receptora de investimentos estrangeiros; iii) os frangos são proteína vegetal transformada e representam um dos poucos produtos agrícolas brasileiros que podem ser vendidos no exterior, face ao escandaloso protecionismo e devastadores subsídios praticados pelas principais potências hegemônicas; iv) e o leite é um produto reconhecida e notoriamente subsidiado à larga pela UE, a ponto de deprimir os preços mundiais respectivos e de seus derivados em 50%.
No caso da indústria aeronáutica, não somente a condenação sofrida pelo Brasil, da ordem de US$ 1,7 bilhão, foi a maior da história do sistema multilateral de comércio do GATT e da OMC, desde 1947, como também implicou em duas perdas estratégicas de enormes proporções e um perigoso precedente legal, que impactarão de forma adversa o comércio exterior e a prosperidade da economia brasileira no futuro próximo. A primeira diz respeito à condenação do programa de financiamento às exportações, o que faz com que o Brasil seja a única dentre as oito maiores economias mundiais a não ter um respectivo sistema lícito, face à ordem legal multilateral, muito embora seja ele, de muito, o menor de todos quantos existem, dentre tais países. A segunda, é pertinente à derrogação de direitos básicos conferidos pelo Tratado do Fundo Monetário Internacional e aos próprios Tratados da Rodada Uruguai, que conferem certo tratamento especial aos países em desenvolvimento. O perigoso precedente legal para o Brasil, assim como para os demais países em desenvolvimento, foi dado pela omissão de alegar, em sua defesa, o conflito de tratados internacionais e, por decorrência, denunciar a incompetência do foro da OMC, para dirimir tal questão.
Neste último aspecto, o precedente utilizado contra o Brasil foi estabelecido no caso movido pelos E.U.A. contra a Índia a respeito de restrições quantitativas para a importação de certos produtos agrícolas, têxteis e industriais, no qual o painel decidiu, sem competência originária e “contra legem”, que não havia conflito entre os tratados mencionados. O presidente do painel a proferir tal desditosa decisão foi um brasileiro, o Embaixador Celso Lafer. Este injudicioso laudo arbitral, acusado na Índia de ter sido em todo ou substancialmente redigido pela divisão jurídica do secretariado da OMC, veio de encontro a uma política estratégica principalmente dos E.U.A., mas também da UE, de descaracterizar as maiores economias dos países em desenvolvimento, desta categoria, de tal forma a poder manter uma maior vantagem competitiva contra elas. Um dos pontos mais conflitivos das difíceis negociações de acessão da República Popular da China (China) à OMC tem sido a exigência dos E.U.A. no sentido de que aquele país renuncie à sua condição de país em desenvolvimento face à ordem jurídica multilateral do comércio internacional.
Nos casos pertinentes ao leite e aos frangos, o Brasil foi derrotado em questões formais, muito embora o mérito da questão fosse eminentemente claro e incontroverso. Na questão da indústria automobilística, o Brasil sucumbiu nas consultas oficiais, o que deu ensejo a declarações jactanciosas da Sra. Barshefsky, a então representante do comércio dos E.U.A.. Em todas as questões contenciosas, o Itamaraty utilizou os serviços do mesmo advogado canadense, sócio de um escritório de advocacia americano, para sua defesa. Tal se deu inclusive nos dois casos da indústria aeronáutica, em que o Canadá foi representado por um advogado naturalmente canadense; o Brasil foi representado por um…… canadense; e o secretariado da OMC foi representado pelo chefe de sua divisão jurídica, um canadense! Coube a um brasileiro, todavia, o labéu de estabelecer o precedente da derrota!
A tibieza demonstrada pelo Brasil na defesa de seus interesses no sistema de resolução de disputas do foro multilateral de comércio traz, ainda, outras implicações colaterais em nada desprezíveis, como o encorajamento a outros países para tomar medidas unilaterais arbitrárias e ilegais contra o País, como fez recentemente o Canadá no caso da carne bovina. Não se pode aqui esquecer que, inspirados pelos E.U.A., os países desenvolvidos, como demonstrou o Canadá, entendem que a ação unilateral é um importante catalista em comércio internacional. Mais ainda, o desempenho, tanto caricatural quanto auto-devastador por parte da diplomacia comercial brasileira, desencoraja o recurso a medidas contenciosas de defesa dos interesses nacionais, no tocante a abusos sofridos por parte de outros países, como aqueles dos E.U.A. na questão do aço.
Por último, tendo sido o país mais contundentemente derrotado por um manifestamente iníquo sistema jurisdicional, como se explicaria o fato de o Brasil ter sido omisso na denúncia das falhas da resolução de disputas no âmbito da OMC; ter deixado de propor amplas e substantivas reformas; e ter se omitido na mobilização de outros países em desenvolvimento na defesa comum da juridicidade e da prevalência do estado de direito nas relações internacionais? Este é um assunto para o próximo segmento da apresentação de hoje.
A natureza contundente e colisiva das relações comerciais internacionais levou todas as grandes potências econômicas, bem como importantes países em desenvolvimento, a transferi-las da área diplomática das relações exteriores para ministérios ou organismos próprios. É assim nos Estados Unidos da América (E.U.A.); na União Européia (UE); no Japão; no Canadá; na Índia e na África do Sul. Tais países reconheceram a contradição entre a formação diplomática e aquela do negociador comercial internacional. Na primeira, o objetivo é o entendimento, o denominador comum, a conciliação; na segunda, a ênfase é o contencioso, o embate, a disputa, a obtenção de vantagens comerciais imediatas e estratégicas. No Brasil, a área está há muitos anos afeta ao Itamaraty. Não sem certa razão. Por muitos anos, a política comercial do Brasil era de fechamento da área externa. Assim, a prioridade era a defesa dos mercados internos e não o acesso aos mercados domésticos dos principais parceiros econômicos. Desta forma, cabia à diplomacia brasileira o jogo da retranca: nada demandar e conceder o mínimo possível. Muitos anos de ditaduras tenebrosas prejudicaram a transparência dos atos praticados, bem como a responsabilização legal dos agentes por crimes de responsabilidade.
Um outro fator, já restaurados o estado de direito e as liberdades democráticas, levou à manutenção da área de relações comerciais internacionais no Itamaraty: a absoluta falta de opção, pela manifesta carência de homens e mulheres especializados no arcano setor, mesmo após a muito negativa experiência das negociações da Rodada Uruguai. De fato, na fase final dos entendimentos, quando foram feitas a grande parte das concessões e redigidos os tratados, apesar do grande sacrifício pessoal de muitos anônimos diplomatas, a participação brasileira foi, em retrospecto, detrimental aos melhores interesses nacionais. Na missão brasileira em Genebra não havia nem computador nem sequer um exemplar da Constituição. Coincidentemente, o ministro de estado das relações exteriores e o chefe da missão eram os mesmos de hoje!
Uma análise realista dos resultados dos últimos cinco anos da participação brasileira na OMC levará à inexorável conclusão de que os diplomatas brasileiros apresentaram-se incompetentes para a defesa dos interesses nacionais, não somente nos casos contenciosos, mas também institucionalmente, no sentido da reforma do iníquo sistema que se implantou, bem como na criação de mecanismos internos de defesa a ações unilaterais, como aquelas a que tem sido vítima tradicional o Brasil da parte dos E.U.A. e, mais recentemente, do Canadá. Nossos diplomatas, freqüentemente mais preocupados com as próprias sinecuras; confundidos pelas pequenas disputas internecinas; promovidos por interesses políticos e não por mérito; distanciados do País e de seus interesses; mal preparados para os duros embates das negociações comerciais; sopitados pela intriga; emaciados pela soberba, pela arrogância e pela sobranceria, tornaram-se pequenos e caricatos sátrapas da política interna de clientelismo e não defensores dos interesses internos e agentes da juricidade internacional.
Em todo o mundo hoje vige, na área da defesa dos interesses comerciais internacionais, uma política de resultados. Quando um negociador americano presta contas ao seu congresso, discorre a respeito dos interesses nacionais e como foram preservados. Quando fala um negociador brasileiro de passado mais recente, ele recorre à desinformação para tratar dos percalços sofridos, situação exemplificada pela declaração de que o sistema de resolução de disputas da OMC era tão justo e eficiente que permitia a países como o Brasil ter vitórias expressivas como aquela contra o Canadá, quando não opta por, em suas arengas, discorrer com gravibundez, às vezes de memória, sobre o doce comércio de Montesquieu! No âmbito da OMC, os países hegemônicos, interessados em controlar o secretariado da organização e sua divisão jurídica, que são os órgãos de efetivo poder, explorando seus gigantescos egos, delegam freqüentemente posições com títulos impressionantes, mas sem substância efetiva, a diplomatas de países em desenvolvimento. Assim, enquanto o Brasil foi o país mais derrotado no sistema de resolução de disputas da OMC, o coordenador do respectivo órgão era um brasileiro, o Embaixador Celso Lafer.
Acresce que, à nefelibata diplomacia brasileira, faltou disposição para auscultar a sociedade civil doméstica e seus interesses econômicos, e com seus agentes trabalhar conjuntamente, coisa que todos os principais parceiros econômicos fazem, a ponto de nos seus mercados domésticos buscarem subsídios técnicos para as negociações internacionais. Mais ainda, faltou a formulação de agendas de negociações, como para a malfadada Rodada do Milênio da OMC. E, mais importantemente, faltou a prestação de contas à sociedade civil, ação indispensável sob a égide do estado de direito! O próximo capítulo desta apresentação analisará a indagação de estar ou não o Itamaraty preparado para a guerra comercial do futuro?
A tibieza que caracteriza o Itamaraty foi agravada nos últimos anos por fatores de ordem doméstica e externa. Internamente, a chamada diplomacia presidencial repercutiu numa influência desmedida dos apontamentos e promoções políticas, freqüentemente sem relação com a competência. Isto teve o condão de colocar o serviço público das relações exteriores a serviço da política interna de clientelismo e, por conseguinte, alterar a relação de lealdade e comprometer decisivamente a disciplina, tradicional atributo do Ministério das Relações Exteriores. Externamente, os diplomatas em posição de responsabilidade, largamente empenhados em servir seus suseranos políticos e de usufruir suas sinecuras, defrontaram-se com uma enorme agenda de trabalho, de vital seriedade para o futuro do Brasil.
De fato, hoje, mais do que nunca, o futuro das nações é dependente do resultado da negociações comerciais internacionais, que implicam em substancial renúncia à soberania; determinam padrões legislativos para ordenamentos jurídicos de ordem pública e privada; asseguram ou limitam o acesso ao mercado doméstico dos demais parceiros comerciais; e, por conseguinte, orientam o crescimento econômico interno, a geração de empregos e a prosperidade geral da nação ou, ao contrário, causam a ruína, a desesperança e a miséria. Assim, os países desenvolvidos, fazendo uso da retórica especiosa do livre comércio que, há cento e cinqüenta anos, vem legitimando todo tipo de abuso e opressão, do tráfico de ópio ao colonialismo, procuram como sempre buscar novos mercados, ao mesmo tempo que mantém protegidos seus setores econômicos de percebida relevância através de sutilezas jurídicas, subsídios e protecionismo. Para tanto, as potências hegemônicas dominam os organismos internacionais; estabelecem as agendas multilaterais; e, individualmente, buscam ainda maiores benesses, comparativamente aos demais membros do cartel dos exploradores, em pactos regionais de comércio.
Assim, a trôpega diplomacia comercial brasileira tem a interferir, com o pleno gozo de suas sinecuras, negociações relevantes e embates duríssimos em diversas frentes. A primeira, e mais óbvia, mas de nenhuma forma a única, destas é o relacionamento, contencioso, institucional ou estratégico no âmbito multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC). Uma outra, de grave importância, diz respeito à iniciativa hegemônica da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), tema que será tratado no próximo segmento desta apresentação, ao qual pode implicar na abdicação pelo Brasil de sua qualidade de nação, tornando-se um apêndice cliente dos Estados Unidos da América (E.U.A.), condenando o povo brasileiro ao papel de trabalhador não qualificado e mero consumidor de produtos e serviços de massa produzidos por entidades forâneas. Dignas de nota, ainda, as negociações para um pacto comercial com a União Européia (UE), que apresentam menores riscos do que aquelas com os EUA e maiores oportunidades na busca de um maior acesso dos produtos agrícolas brasileiros aos mercados domésticos daquele bloco comercial. De grande relevância estratégica para o Brasil são os entendimentos para o aprofundamento do Mercosul, com, a título de exemplo, a criação de um tribunal de justiça regional, a uniformização legislativa, a união monetária; bem como sua expansão, com o ingresso de novos membros do continente, mas também de fora, como a África do Sul.
Como pode-se muito bem depreender, trata-se de uma agenda grave e ponderosa. Estará o inviril Itamaraty apto a representar em tais questões os melhores interesses nacionais? A análise do seu desempenho nos últimos anos impõe uma resposta absolutamente negativa. Tal situação ficou mais evidente perante a opinião pública nacional com a ação unilateral do Canadá contra o Brasil, na questão da carne, uma represália ilegal por conta da disputa aeronáutica. Sofrida a violência, a reação nacional veio da indignação da sociedade civil e não do Ministério das Relações Exteriores, que sequer chamou de volta o embaixador no Canadá, talvez desinclinado a interferir no usufruto da satrapia. Suspender as negociações da ALCA? Nem pensar! Denunciar o acordo de bi-tributação? Coisa de macho! Apresentar projeto de lei de defesa econômica contra ação ilegal e unilateral por parte de outros países? Uma violência! De todo o arsenal disponível para firmar posição, não somente perante o Canadá, mas ante outras potências econômicas, o Brasil através do Presidente da República apenas deu um prazo de três semanas, noticiado internacionalmente, para a suspensão da medida. Esta medida foi impulsionada pela reação da sociedade civil brasileira, indignada, e não faz parte de um arcabouço institucional de reação ao arbítrio comercial, que outros países tem disponível para dissuasão e uso eventual.
Ao contrário do que sucedia ao final da Rodada Uruguai do GATT, hoje a vasta e esmagadora maioria dos profissionais brasileiros competentes na área comercial e legal internacional está fora do Itamaraty. Cumpre, por conseguinte, realocar urgentemente a responsabilidade pela ação comercial internacional brasileira, antes que seja tarde demais! Para um país como o Brasil, a adesão ao NAFTA ou ao ALCA baseado no modelo “cubo e raios”, no geral, e sobre as condições inflexíveis impostas ao México, em particular[1], seria um desastre na ordem econômica e social. Este desastre ocorreria certamente no setor de serviços, uma vez que representa mais de 50% do PIB brasileiro, devido ao movimento de pessoas, essencial para os fornecedores de serviços[2]
, não ser assegurado pelo NAFTA[3] para os países “raios”. Como foi advertido pela OMC, o fluxo entre os raios e cubo limitariam a relação entre os raios e serviria como um enorme incentivo para a fuga de capitais e presença comercial no cubo. Empresas de outras partes do mundo se interessariam em estabelecer presença comercial no cubo, mais do que nos raios, mesmo que devam relacionar-se com os raios. O cubo forneceria o setor financeiro para os raios. O setor de educação nos raios seria muito afetado, pelo menos no que tange às áreas de administração de negócios e financeira, pois haveria uma força centrífuga atraindo para o cubo, pelas mesmas razões acima expostas. A agricultura, pelo menos no Brasil e na Argentina, seria destruída pelos 200 bilhões de dólares, de subsídios praticados pelos E.U.A. e Canadá, e tal trágico fim certamente incluiria o setor açucareiro no Brasil, que emprega mais de 1 milhão de trabalhadores rurais. De fato, não se trata de perspectiva muito atraente!!![4]
No entanto, um NAFTA aumentado não apresentaria oportunidades para aumento de exportação da América Latina? A resposta é dada por um advogado americano, especialista em comércio internacional, “um NAFTA aumentado provavelmente não levará ao incremento de exportações da América Latina aos E.U.A., exceto para as áreas têxteis e de vestuário, onde as regras restritivas do NAFTA para os regimes de origem podem conduzir exatamente a este tipo de anomalia comercial. Para os produtos industriais, geralmente, as tarifas dos Estados Unidos são comparativamente mais baixas e a perspectiva de uma preferência em favor das exportações regionais sobre as exportações não regionais é remota”.[5]
Para a formatação da ALCA pretendem os E.U.A. utilizar a estrutura do NAFTA dentro da seguinte agenda afirmativa:[6]
i) abertura dos mercados de serviços dos demais países;
ii) o acesso ao mercado de mercadorias com tarifas mais baixas;
iii) a manutenção de regras de origem que dificultem o acesso de terceiros países;
iv) a imposição de critérios legislativos e culturais próprios, com expressiva renúncia à soberania por parte dos outros membros; e
v) uma “colheita precoce” de todos os benefícios acima.
Na agenda defensiva do E.U.A. para as negociações da ALCA consta o seguinte:
i) manutenção do regime fechado de serviços através de barreiras horizontais;
ii) manutenção do regime de subsídios agrícolas;
iii) manutenção da estrutura legislativa unilateral situada acima dos tratados internacionais, em violação ao direito internacional; e
iv) só fazer concessões dilatadas no futuro.
A perspectiva da obtenção de tais objetivos infames deixa profundamente excitados tanto estrategistas como homens de negócios e agentes governamentais americanos. Assim, o historiador radical americano, Walter A. McDougall, importante ideólogo do imperialismo, chamou o NAFTA de forma convencional de se assegurar mercados cativos para a expansão comercial e de “o grande vôo da águia”.[7]
Da mesma forma, o propósito exclusionário e dominador das negociações fica claro com as declarações de um dos diretores da Caterpillar, fazendo “lobby” para aprovação da autorização “fast-track” do Congresso americano: “as pessoas parecem não entender que se tivéssemos um acordo de comércio, poderíamos vender todos nossos produtos sem impostos, enquanto nossos concorrentes japoneses e europeus estariam enfrentando uma tarifa de 11%.”[8]
Por sua vez, a Senhora Charlene Barshefsky, funcionária responsável pelo United State Trade Representative (USTR), escritório comercial americano e que tem nível de ministra, comentou pública e despudoradamente, em Washington, que a ALCA seria um tremendo almoço grátis para os E.U.A..[9]
Dentro da perspectiva legal, há outro fator contra a inserção na ALCA pela substancial razão de que, nos E.U.A. tratados como o NAFTA e mesmo aqueles derivados da Rodada Uruguai e envolvendo a OMC estão situados abaixo da lei federal norte-americana, na hierarquia das normas. Na América, como na Europa, e na maioria dos países do mundo, os tratados estão situados acima das leis locais e são aplicáveis no respectivo território[10]
. Isto não ocorre nos E.U.A.. De fato, já que as leis dos E.U.A. somente dão aplicabilidade aos acordos auto exeqüíveis, e isto exclui os acordos do NAFTA e da GATT, “existe a possibilidade de que as cortes dos Estados Unidos possam chegar a decisão contrária ao Direito Internacional, e que tal decisão possa causar violação por parte dos Estados Unidos de suas obrigações internacionais.” [11] Em tal caso, o relevante tribunal americano estará adstrito a cumprir as normas locais.
Além do mais, a legislação interna americana no tocante a implementação dos tratados da Rodada do Uruguai estabelece na seção 102 (a) que “não deverá ter efeito nenhum dispositivo de quaisquer acordos da Rodada Uruguai, nem aplicações de qualquer de seus dispositivos a qualquer pessoa ou circunstância, que seja incompatível com a lei dos Estados Unidos.”[12]
Semelhantemente, em conexão com o NAFTA, a lei federal dos Estados Unidos estabelece na seção 102 (a) (1) da legislação de regência que “nenhum dispositivo do Acordo nem aplicações de qualquer dispositivo a qualquer pessoa ou circunstância, que seja incompatível com a lei dos Estados Unidos deverá ter efeito.”[13]
Consequentemente, NAFTA não é necessariamente exeqüível nos E.U.A., mas certamente o é nos outros territórios signatários. Em um mundo que busca a transparência e a prevalência das leis no Comércio Internacional, assim como nos negócios internacionais, isto é claramente inadmissível e permite a imediata presunção de má fé em qualquer acordo de comércio negociável pelo governo americano.[14]
Impulsionado pela força da opinião pública, o Brasil tem procurado alternativas para se atingir o livro comércio no hemisfério, sem cair na cilada do NAFTA. Uma dessas alternativas é a criação da Associação do Livre Comércio na América do Sul (SAFTA), um conceito meritório. Esta posição foi percebida pelos negociadores americanos e tornou-se rapidamente notória.[15]
Há pouco mais de um ano denunciei pela primeira vez que exercícios acadêmicos estavam sendo discutidos nos E.U.A. sobre como isolar o Brasil nas negociações da ALCA.[16]
Uma alternativa era o chamado tratamento diferencial, oferecendo vantagens específicas há alguns países para atraí-los ao NAFTA.[17]
Outra é que os E.U.A. “encorajariam” o Brasil a retardar a redução de tarifas no âmbito multilateral para assim neutralizar a oposição interna brasileira à integração regional. Uma terceira consistiria em o E.U.A. penalizar o Brasil no comércio bilateral oferecendo a ALCA como solução dos problemas[18]. Recentemente, a imprensa brasileira e internacional tem denunciado, à exaustão a implementação pelo governo dos E.U.A., de tais formulações acadêmicas, com o objetivo de, em desestabilizando o Mercosul, forçar o governo brasileiro a aceitar uma proposta comercial flagrantemente contrária à soberania e os interesses nacionais.
Do ponto de vista estritamente comercial, para países como o Brasil e a Argentina, a adesão à ALCA formatada nos moldes do NAFTA seria um desastre sem precedentes. Esse desastre seguramente ocorreria no setor de serviços, que representa mais de 50% do PIB brasileiro. O setor agrícola no Brasil e na Argentina seria destruído da noite para o dia, com a perda de milhões de empregos rurais. No Brasil, os setores de soja, de açúcar e de proteínas animais não poderá competir com os subsídios americanos e canadenses. Na Argentina, o setor de trigo sofreria a mesma desditosa sorte.
Ao efeito deletério da perda do refererencial tarifério, deve-se somar a circunstância de que a modernização do aparato legislativo institucional brasileiro, como por exemplo a formatação racional do sistema tributário, ainda está por ser feita. Em sua falta, a produção industrial brasileira é penalizada e o País torna-se uma plataforma inviável de exportação pelos custos tributários e sociais onerosos comparativamente aos nossos parceiros comerciais. As reformas políticas no Brasil, com a redemocratização em 1986, são lentas.
Não se alegue que uma ALCA formatada no NAFTA apresentaria oportunidades para aumento de nossas exportações. As tarifas dos E.U.A. já são baixas o suficiente e, na média a economia brasileira seria altamente prejudicada. Estrategicamente, a ALCA representaria, para o Brasil, uma situação muito pior do que o infame Tratado de Comércio e Navegação celebrado em 1827 com a Inglaterra e que impediu a industrialização do País. Sem a proteção tarifária, legítima face à ordem multilateral e indispensável instrumento de equalização de competitividade para os países em desenvolvimento, a maior parte da indústria brasileira entrará em colapso.
Mais ainda, o Brasil mantém com o bloco econômico do NAFTA apenas cerca de 24% do seu comércio externo, enquanto a UE, é responsável por aproximadamente 25% e os países da ALADI, por 26%. Todavia, a UE hoje é responsável por 70% dos investimentos e 70% dos financiamentos ao Brasil, inclusive na área de créditos à exportação. A ALCA alienará nossos principais parceiros comerciais e substancialmente tirará do Brasil a atratividade como polo receptor de investimentos.
De fato, os investimentos tenderão a concentrar-se no cubo, os EUA, de onde os invetidores internacionais centralizarão mas operações continentais e onde comprarão produtos e serviços em economia de escala regional. O mercado financeiro brasileiro, que responde por cerca de 18% do PIB, migraria em grande parte para os EUA. Certamente, isto ocorreria na área das bolsas de valores, das bolsas de mercadorias e dos bancos de investimentos. Os prestadores de serviços de consultoria, auditoria e legais seriam contratados nos EUA. Pela falta de perspectivas na área de serviços o setor educacional brasileiro entraria em colapso, já que as oportunidades econômicas seriam poucas e limitadas a atividades que independem de grande educação formal, como a venda de merendas rápidas.
Acresce que a ALCA, por ser formatada no modelo alienante do NAFTA, onde aumento o volume de trocas bilaterais do México e Canadá com os EUA a arpoximadamente 90% do comércio global, existe o grave risco de uma grande dependência do referencial cultural dos EUA, algo que é rejeitada pela opinião pública brasileira.
O conceito da ALCA, formatada no NAFTA, apresenta uma hipótese na qual o MERCOSUL, em geral, e Brasil, em particular, não teriam nada a ganhar e tudo a perder.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).