A grave crise funcional da OMC (Organização Mundial do Comércio) promoveu a perda de credibilidade institucional do regime multilateral do comércio e causou o recente colapso da Rodada Doha.
Já era de amplo conhecimento da opinião pública internacional que o regime da OMC tem promovido a prosperidade de uns poucos países, os desenvolvidos, em detrimento dos muitos, aqueles em desenvolvimento. Estudos levados a efeito por organismos como a ONU (Organização das Nações Unidas), o Banco Mundial e o FMI (Fundo Monetário Internacional) concluíram que aproximadamente 70% dos benefícios do sistema multilateral recaem para os países desenvolvidos.
Mais ainda, os países desenvolvidos dominam toda a máquina administrativa da OMC e manipulam o seu funcionamento em interesse próprio. A desmoralização da OMC chegou a tal ponto que a declaração ministerial de 14 de Novembro de 2001, que lançou a Rodada Doha, foi levada a reconhecer a importância de se assegurar que os países em desenvolvimento obtivessem uma participação no comércio internacional compatível com sua necessidade de crescimento econômico.
Mais ainda, a declaração ressaltou que, para que tais fins fossem obtidos, seria importante a existência de regras equilibradas, melhor acesso a mercado, apoio financeiro e tecnológico. Esse enunciado correto decorreu da percepção generalizada que a Rodada Uruguai, que antecedeu a Doha, foi a responsável por uma grande guinada do sistema em favor dos países desenvolvidos, criando uma regulamentação de serviços, de propriedade intelectual e de investimentos que protege os seus exclusivos interesses, em detrimento dos países subdesenvolvidos.
Ao mesmo tempo, o regime jurídico criado pela Rodada Uruguai permitiu a manutenção dos subsídios agrícolas e dos picos tarifários, que impedem o acesso daquilo que não é julgado interessante nos países desenvolvidos. Por outro lado, o sistema de resolução de disputas da OMC, que era uma grande esperança dos países em desenvolvimento para a promoção de maior juridicidade no sistema, falhou pela manipulação dos países desenvolvidos e por suas deficiências estruturais.
Pois bem, como tem sempre ocorrido no sistema multilateral do comércio, as intenções enunciadas na declaração foram apenas figurativas. Em realidade, os principais atores internacionais, os países desenvolvidos, mantiveram a sua conhecida agenda do jogo da soma zero, em que o seu ganho era a perda dos países em desenvolvimento.
Dessa maneira, a União Européia (UE) apressou-se em aprovar unilateralmente sua Política Agrícola Comum até o ano de 2013, fixando os seus escandalosos e devastadores subsídios agrícolas até aquela data, apresentando o fato consumado aos países desenvolvidos. Os EUA fizeram o mesmo com sua Farm Bill. Enquanto defendiam-se dos pedidos de liberalização agrícola dessa maneira absolutamente imoral, EUA e UE tinham uma agenda agressiva de demandas de liberalização na parte de serviços e tarifas industriais aos países em desenvolvimento.
Era neste ponto que recaia o enorme perigo para o Brasil no âmbito da Rodada Doha. De fato, o setor de serviços representa aproximadamente 50% e o setor industrial cerca de 25% do PIB brasileiro. Desde a Rodada Uruguai, enquanto a participação dos países desenvolvidos nas vendas internacionais de serviços cresce num patamar de cerca de 5%, aquela do Brasil cresce a menos de 1%.
Acresce que com o chamado custo Brasil a onerar todas as atividades econômicas no país, o setor industrial ainda necessita da proteção legal de tarifas elevadas para poder sobreviver. De outra maneira, com as presentes taxas de juros, tributação e câmbio sobre valorizado, nenhuma indústria sobreviveria em nosso território.
O governo brasileiro, representado pelo Itamaraty, coordenou suas ações no chamado Grupo dos 20, à semelhança do que já fizera na Rodada Uruguai com o Grupo dos 11. Dessa base, nossas demandas foram modestas e se concentraram no setor agrícola. O Brasil não demandou uma revisão dos acordos de serviços, o GATS, de investimentos, o TRIMS, ou de propriedade intelectual, o TRIPS. Tampouco o país teve sugestões para a revisão do sistema de resolução de disputas.
Como as negociações brasileiras foram conduzidas sem transparência, não se sabe com que concessões nossos representantes acenaram aos países desenvolvidos na área de serviços e de bens industriais para obter as desejadas vantagens agrícolas que, afinal, não se materializaram. Valeriam elas a pena? Não se pode dizer.
Dessa maneira, ao contrário do que ocorreu durante a Rodada Uruguai, onde os interesses brasileiros foram fragorosamente derrotados, podemos respirar aliviados com o colapso da Rodada Doha. Fomos salvos pelo gongo.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).