O colapso das negociações da Rodada Doha, no âmbito da Organização Mundial do Comércio (OMC) acabou por representar um resultado positivo para o Brasil, na medida em que evitou a concretização de mais uma situação desvantajosa, em que o país sairia perdedor, mais uma vez. De fato, na Rodada Uruguai, os países desenvolvidos ficaram com cerca de 80% das vantagens, contra 20% para os países emergentes.
De mais a mais, os países ricos fizeram a formatação do regime da OMC, nas chamadas áreas novas, de maneira a manter essa vantagem comparativa.
Assim, a OMC tem sido corretamente acusada de promover a prosperidade de uns poucos, em detrimento dos muitos. A infâmia do organismo multilateral no foro da opinião pública internacional foi induzida por críticas formuladas pela ONU, pelo Banco Mundial, pelo Fundo Monetário Internacional, além de organizações não governamentais de grande respeitabilidade mundial. Por isso, tratou-se de dar à Rodada Doha o epíteto de desenvolvimento, para promover a idéia de que os interesses dos países emergentes seriam, desta vez, atendidos.
Contudo, tratava-se mais uma ocasião de uma tática de mercado, uma denominação especiosa e enganosa, já que na realidade a formatação das negociações, ou a pré-negociação daquilo que seria o objeto dos entendimentos, foi conduzida em favor dos países ricos, como ocorre desde 1947.
Dessa maneira, não se procurou colocar na pauta da ronda a correção dos abusos dos tratados de propriedade intelectual, investimentos e serviços, que atendem, quase exclusivamente aos interesses dos privilegiados. Igualmente, não se buscou a substancial e imediata redução dos subsídios agrícolas. A reforma do ineficaz, desmoralizado e manipulado sistema de resolução de disputas ficou paralisada em 2003. O regime de subsídios, salvaguardas e dumping, continua com sérios vícios, sem que se propusesse uma vertente de entendimentos visando uma reforma de fundo.
Portanto, a pauta de negociações ficou restrita à liberalização comercial ou diminuição das tarifas dos pobres nas áreas industrial e agrícola, bem como à abertura dos mercados de serviços dos miseráveis às aves de rapina dos países ricos. Para obter tais vantagens, migalhas foram oferecidas, como de hábito, mas o acompanhamento atento da opinião pública internacional impediu, por ora, que sucumbissem mais uma vez os países em desenvolvimento.
Ainda que as ofertas dos países ricos fossem honestas, concretas e substanciosas, a Rodada Doha apresentou um dilema ao país, porque a baixa competitividade internacional do Brasil impediria que sua economia se beneficiasse. De fato, ainda que se por intervenção divina o jogo do comércio internacional deixasse de ser iníquo, rapace e predatório, e passasse a ser balanceado, justo e livre, o Brasil sairia, mesmo assim, perdedor!
Esse triste cenário apresentar-se-ia inexoravelmente porque nossa pouca condição de competir iria causar um desastre econômico somente menor a uma situação em que se implantasse o regime que foi proposto para a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), iniciativa felizmente sepulta pelo governo Lula.
Senão vejamos, não é nossa taxa de juros a segunda maior do mundo? Não é a nossa moeda a mais valorizada dentre todos os países? Não está nossa tributação dentre as mais elevadas e nossa eficiência administrativa dentre as mais reduzidas? Não levamos cerca de seis meses para constituir uma empresa e uma eternidade para liquidá-la? Não está o nosso Judiciário em crise crescente? Nossas fronteiras não estão abandonadas? Nossos portos não são comparativamente ineficientes? Nossa infra-estrutura de transportes não é precária?
Todos esses fatores, num cenário de liberalismo e livre comércio de fato e direito, iriam induzir um aumento de importações na área industrial e de serviços, bem como uma diminuição da atividade produtiva doméstica nestes setores, com sua mudança para países que oferecessem uma plataforma de produção mais eficiente. Sobraria, por pouco tempo, o setor agrícola para a produção de mercadorias primárias, até que viesse a ser contaminado pelas complexas dificuldades organizacionais.
Assim, antes de nos lançarmos nas águas turvas de uma reativação das negociações da Rodada Doha, mesmo de uma nova ronda do sistema multilateral, deveremos lançar-nos, prioritariamente e com empenho, a resolver os obstáculos institucionais que impedem que o Brasil atinja um nível em que sua economia poderá competir, com sucesso, no foro internacional.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).