Gostaria de cumprimentar os Professores Doutores Leonardo Nemer e José Alfredo
de Oliveira Baracho pela iniciativa da realização deste importante congresso em
Belo Horizonte, bem como pelo honroso convite de proferir uma conferência sobre
o instigante tema “O Mercosul, a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e
a Organização Mundial do Comércio (OMC)”. Dividi minha apresentação de hoje, com
o objetivo de discorrer sobre os seguintes tópicos:
Esta Introdução;
O Contexto Histórico do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) e a Teoria
do Realismo nas Relações Internacionais;
A Criação da OMC e o Desempenho dos Países em Desenvolvimento, Notadamente os
do Mercosul;
Os Temas da Rodada Desenvolvimento/Doha;
Falhas Operacionais e Sistêmicas do Órgão de Resolução de Controvérsias da OMC;
A Iniciativa da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) como Instrumento
Estratégico do Imperialismo dos Estados Unidos da América (EUA); e
Conclusão: o Mercosul face ao Garrote Hegemônico.O Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) foi assinado
em 1947 originalmente por 23 países, incluindo o Brasil, e fez parte dos acordos
internacionais assinados ao final da segunda grande guerra visando a criação
de uma nova ordem mundial. Até então, nunca tinha-se verificado, na história
moderna, uma tal hegemonia de um país sobre os demais que se permitisse uma
imposição de diversos sistemas de direito internacional por um estado aos outros.
As condições particulares do final do conflito, em que o mundo achava-se em
grande parte destruído, permitiram aos Estados Unidos da América (EUA) que impusessem
um regime jurídico comercial internacional, com alguma contribuição ideológica
do Reino Unido.
2.2.- Tal fenômeno recebeu roupagem doutrinária através
a chamada “teoria do realismo nas relações internacionais”, mediante a qual
os estados hegemônicos deveriam agir puramente no interesse próprio e com o
objetivo único da perseguição de segurança política e militar[1] . O “desafio
realista” impunha o corolário do desprezo à ordem jurídica internacional, condenada
a um papel periférico e ocasional na regulação das relações internacionais[2] .
O sistema internacional resultante de tal quadro foi composto das chamadas instituições
de Bretton Woods, o Banco Mundial, o Fundo Monetário Internacional e o GATT.
Seu garante seriam os EUA, agindo no seu próprio interesse.
2.3.- O objetivo jurídico do GATT foi o de estabelecer
uma ordem jurídica para o comércio internacional de mercadorias. O objetivo
dos negociadores dos EUA era no sentido de que esta ordem jurídica beneficiasse-os
a curto prazo e que, potencialmente, não prejudicasse de forma significativa
seus interesses econômicos, a médio e a longo prazo. Desta forma, prevendo a
probabilidade, num futuro próximo, do aumento da competitividade no setor agrícola,
como parte da reconstrução mundial, o segmento foi excluído do sistema multilateral
do GATT, apesar de representar a atividade humana econômica mais tradicional
e de ser aquela de maior importância para os países em desenvolvimento. Este
revés representou a primeira derrota do Brasil no sistema multilateral de comércio,
já que tinha sido a única reivindicação levada pelos negociadores brasileiros[3] .
2.4.- O sistema multilateral de comércio foi baseado
no pilar do princípio da cláusula da nação mais favorecida (NMF)[4] , segundo
o qual uma concessão a um país é automaticamente aplicável a todos os países
signatários do tratado. Este princípio basilar evitaria as iniqüidades do comércio
favorecido e promoveria a liberalização generalizada das trocas e, por conseguinte,
a prosperidade geral. O princípio, no entanto, não é absoluto e admite diversas
exceções, inclusive aquela consagrada no artigo 24 do GATT, que permite a formação
de zonas de livre comércio, mercados comuns e uniões aduaneiras.
2.5.- Na prática, contudo, o GATT demonstrou-se um jogo
de cartas marcadas onde, sob o diáfano verniz da pretensa juridicidade, escondia-se
um sistema criado para promover a hegemonia e a prosperidade de uns poucos às
expensas de muitos. O sistema do GATT funcionava na base do consenso, que foi
a forma encontrada pelos EUA de manter o seu poder de veto às alterações pretendidas
à estrutura erigida sob sua inspiração e vontade. Todas as alterações às regras
originais, bem como a criação de novas, eram dependentes do sistema de rodadas
de negociações, mediante o qual representantes dos países signatários buscavam
o consenso a respeito das matérias tratadas. As cinco primeiras rodadas do GATT
foram iniciadas sob a inspiração e iniciativa dos EUA. As mudanças obtidas o
eram freqüentemente como resultado de pressões políticas e econômicas daquele
país[5] .
2.6.- Enquanto todos os países signatários colocavam
o ordenamento jurídico do GATT acima de suas legislações nacionais, os EUA faziam
o contrário, de tal maneira a permitir que seu ordenamento jurídico interno
tivesse medidas que neutralizassem seus compromissos multilaterais[6] . Essa
idiossincrasia permitiu que os EUA mantivessem normas internas contrárias aos
seus compromissos internacionais no GATT, como na área “antidumping”. Desta
forma, enquanto os EUA podiam exercer os direitos decorrentes do GATT contra
os seus parceiros comerciais, a recíproca não era necessariamente verdadeira.
2.7.- Muito embora os EUA tivessem uma estrutura realista
de poder e uma situação econômica a lhes permitir um abuso devastador na ordem
internacional, há de se ressaltar que, na prática, os países em desenvolvimento
foram mantidos numa situação que os mantinha na zona limítrofe superior da miséria
absoluta. Tal ocorreu, não por decorrência de posicionamentos altruístico ou
eqüitativos, mas ao contrário, como corolário da guerra fria, que antagonizava
o sistema capitalista ao sistema comunista. A mesma equação permitiu, e até
encorajou, o desenvolvimento econômico nos aliados estratégicos dos EUA, para
que pudessem juntar forças na oposição aos rivais comunistas. Como corolário
deste estado de coisas, deu-se a recuperação econômica do Japão e da Europa.
Os países menos desenvolvidos, no entanto, ficaram relegados à miséria absoluta
e, por decorrência, tornaram-se joguetes no mundo bi-polarizado.
2.8.- Todavia, a guerra fria não impediu que as regras
do sistema multilateral de comércio continuassem não eqüitativas e prejudiciais
aos demais países, inclusive aos aliados estratégicos dos EUA. Como decorrência,
em meados da década de 80, o Japão, uma das maiores vítimas das arbitrariedades
institucionais dos EUA em matéria comercial, tomou a iniciativa de requerer
o início de uma nova rodada de negociações do GATT. Era a primeira vez que um
país outro que os EUA tomava a iniciativa de fazê-lo. Ao contrário de oporem-se
à iniciativa, os hábeis estrategistas dos EUA cooptaram-na, para melhor servir
aos seus interesses. Pretendia o Japão uma maior segurança jurídica no sistema
multilateral, para evitar os abusos dos quais era vítima. Os EUA prontamente
sugeriram a expansão do campo de abrangência do GATT para a inclusão das áreas
novas como serviços, investimentos e propriedade intelectual. Os EUA haviam
se apercebido que a dinâmica econômica mundial era tal que havia chegado o momento
da convergência de interesses entre os países desenvolvidos, para melhor exploração
do potencial dos países em desenvolvimento. A então Comunidade Econômica Européia[7]
(CEE) estava de pleno acordo.
2.9.- A questão da cooperação entre as potências para
a exploração dos países menos desenvolvidos não era nova, nem no aspecto prático,
nem tampouco sob o prisma teórico. Já em meados do século 19, por exemplo, o
Império Britânico, EUA, França e Holanda tinham colaborado ativamente no contrabando
de heroína para a China[8], de tal forma a criar naquele país um produto de
consumo que devesse ser necessariamente adquirido do exterior, com o objetivo
de eliminar os saldos comerciais chineses. Na ocasião, os EUA aproveitaram-se
da política exterior inglesa e chegaram a ter cerca de 10% do comércio da droga
maldita para a China[9]. Para os sagazes estrategistas ingleses, como Benjamim
Disraeli, não escapou a constatação de que a expansão das relações comerciais
britânicas dependia de uma política de acerto com outras potências[10].
2.10.- Para a surpresa de todos os envolvidos, a cooperação
das grandes potências na Rodada Uruguai sofreu uma tanto inesperada como bem
sucedida oposição dos países em desenvolvimento que, pela primeira vez, recusaram-se
a aceitar o regime expoliativo proposto. Liderados pela Índia e pelo Brasil,
no chamado Grupo dos Onze, tais países foram contrários à inclusão das chamadas
áreas novas sem que seus setores de maior competitividade relativa no comércio
internacional, o agrícola e o têxtil, fossem incluídos no sistema. Instaurou-se
imediatamente grande acrimônia no GATT. As relações entre países desenvolvidos
e em desenvolvimento tornaram-se não somente álgidas, mas também acerbas. Os
EUA, na administração Reagan, lançaram uma campanha de desestabilização do Brasil[11],
então muito vulnerável na reconstrução democrática iniciada no governo Sarney,
visando sua exclusão das fontes de financiamento das agências multilaterais
de crédito, bem como adotando uma política de juros predatória destinada a arruinar
a economia brasileira, numa medida comercial inequivocamente característica
de estado de guerra.
2.11.- No decorrer do impasse, deu-se a queda do muro
de Berlim e ocorreu o colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas
(URSS) que havia induzido um certo sentido de parcimônia e comedimento aos EUA,
em suas relações com o resto do mundo, em geral, e com os países em desenvolvimento,
em particular. A mudança da situação geo-política global levou à cessação das
resistências às pretensões dos EUA e seus aliados por parte dos países em desenvolvimento,
muitos dos quais apressaram-se a ceder às exigências formuladas, sem ao menos
negociar as contrapartidas dentro do quadro de negociações da Rodada Uruguai,
como foi o caso de Argentina e Brasil. Restou aos países em desenvolvimento
lutar pela maior juridicidade do sistema multilateral de comércio e aceitar
o compromisso de inclusão efetiva das áreas agrícola e têxtil após um período
de desgravação.
2.12.- Já ao cabo da Rodada, o próprio Banco Mundial
e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) apontavam
os países em desenvolvimento como perdedores da ronda de negociações. Segundo
uma ominosa análise do Banco Mundial datada de 1993, os resultados da Rodada
Uruguai beneficiariam em 64% países desenvolvidos, contra 36% para os países
em desenvolvimento[12]. A realidade provar-se-ia muito pior. De acordo com um
recente estudo do FMI, os países desenvolvidos ficaram com 73% dos benefícios
durante os subseqüentes 6 anos de vigência da OMC, contra apenas 27% dos países
em desenvolvimento[13].
3.1.- Com a assinatura dos Tratados da Rodada Uruguai,
em 1994, foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC), que passou a vigorar
a partir de 1995, coexistindo com o tratado do GATT[14]. Na ocasião, alardeou-se
com gravibundez que uma nova era de prosperidade mundial tinha sido iniciada.
Em todo o mundo em desenvolvimento, inclusive no Brasil e na Índia, manifestações
houve de importantes lideranças políticas no sentido de que muito se esperava
da nova ordem multilateral de comércio. Ocorre que a fase final das negociações
da Rodada Uruguai foi marcada por uma grande omissão dos países em desenvolvimento,
o que permitiu às principais potências adequar o sistema às suas vontades, culturas
e preferências idiossincráticas. Isto sucedeu-se inclusive no sistema de resolução
de disputas, depositário de todas as esperanças do fim do arbítrio e da iniqüidade
no sistema multilateral de comércio. Assegurado o domínio do sistema pelas potências
hegemônicas, foi ele utilizado no sentido de extração de vantagens nacionais
ou setoriais, em detrimento do interesse coletivo.
3.2.- De fato, nos cinco anos subseqüentes à fundação
da OMC, em 1995, a prosperidade mundial esteve, mais do que nunca, circunscrita
aos países desenvolvidos, particularmente os EUA e a União Européia (UE). Contemporaneamente,
os países em desenvolvimento foram vítimas de uma enorme crise de volatilidade
financeira internacional; diminuição de exportações; dramática redução dos preços
de suas mercadorias agrícolas e demais produtos básicos; crises econômicas;
e generalizada desesperança. De acordo com números da OMC, tanto a Ásia como
a América Latina tiveram um pior desempenho no comércio de mercadorias nos quatro
anos subsequentes a 1995 do que no período precedente.[15] Preços de mercadorias
agrícolas caíram consistentemente no período, sendo que mais de 30% somente
após 1998.[16] Os preços do café caíram 70% desde 1997[17]. De acordo com a
OMC, a África e a América Latina dependem em 19% e 36% do setor agrícola em
suas exportações[18]. Por sua vez, os agronegócios, no Brasil, respondem por
25% do PIB, 37% do total de empregos e 40% das exportações.
3.3.- A participação do Brasil no comércio global caiu
de cerca de 1.6% quando do lançamento da Rodada Uruguai em 1986 para 0.8% hoje.
O Brasil exporta apenas US$ 323 per capita, contra US$ 6.000, em média, nos
países desenvolvidos. Apenas aproximadamente 3.000 empresas brasileiras são
exportadoras e destas, somente cerca de 400 recebem financiamento às suas exportações,
sendo que uma só absorve quase 45% dos recursos disponíveis. Desde a criação
da OMC, em 1995, o Brasil acumulou um défice comercial de US$ 21 bilhões, maior
do que o total agregado desde sua independência. Este défice causou a exportação
de mais de 3.5 milhões de empregos. Por outro lado, o crescimento médio da economia
brasileira no mesmo período foi de apenas 2.4%, um dos menores do mundo. Este
crescimento foi mal suficiente para a absorção do incremento populacional e
repercutiu negativamente na criação de mão de obra e assimetricamente na distribuição
de renda, de modo a desfavorecer as classes menos privilegiadas.
Balança Comercial
Evolução da balança comercial desde o início do governo FHC, em US$ milhões
3.4.- Por sua vez, a Argentina foi um dos países mais
prejudicados pela ordem econômica multilateral, desde sua criação em 1947, passando
da posição duma das 7 maiores economias mundiais do pós-guerra, para um estado
virtualmente levado à inviabilidade. É claro que a exclusão dos produtos agrícolas
do sistema multilateral de comércio e as montanhas de subsídios tanto ilegais
como imorais praticados pelas maiores economias não foram a única causa da derrocada
argentina. Igualmente, foi também grandemente responsável a campanha de desestabilização
do Mercosul, levada a efeito pelos EUA, e apoiada ao longo de 10 anos pelo FMI,
que compreendeu a indução ao governo argentino à adoção da insana, bizarra e
grotesca paridade cambial do peso com o dólar. Esta situação levou à queda do
PIB argentino em nada menos de 20% nos últimos 4 anos[19], com o nível de desemprego
atingindo o terrível patamar de 35%. Desde 1995, o PIB acumulado argentino caiu
4.3%!
As crises econômicas foram seguidas por instabilidade
social e política em grandes partes do mundo. Na Rússia, o escambo tornou-se
o principal meio de troca. Na África, a situação continua dramática e mesmo
as experiências bem sucedidas, como é o caso da África do Sul, deixaram de ter
o apoio de maior acesso de seus produtos aos mercados internacionais, tendo
resultado num quadro de instabilidade induzida do exterior, inclusive pela grande
desvalorização cambial havida desde a democratização do país em 1994. A crise
afetou até economias desenvolvidas, como a japonesa. Ainda na Ásia, Filipinas,
Tailândia, Indonésia e Malásia, todos tiveram dramáticos problemas econômicos.
A Índia, o hoje segundo mais populoso dentre os 144 membros da OMC, mas o primeiro
quando de sua criação, deixou de ter qualquer benefício digno de nota como resultado
do novo sistema multilateral de comércio.
Na América Latina, é grave o quadro de instabilidade
econômica e política, que ameaça a prevalência do estado de direito e a prosperidade
dos povos. Há movimentos de insurgência armada na Colômbia, Peru, Equador, México,
Venezuela e, até certo ponto, na Argentina e no Brasil. O Mercosul, uma meritória
iniciativa, está naufragando sob a perspectiva comercial, relegado a uma situação
de trocas administradas decrescentes, em função das enormes dificuldades institucionais
na Argentina. Por sua vez, os organismos internacionais, manipulados por um
matiz hegemônico sem limites, orientado pela política do realismo, impuseram
a estólida insana e cruel doutrina de que, quanto maior a miséria doméstica,
maior a competitividade internacional do país. Hipocritamente, a receita só
vale, é claro, para os países em desenvolvimento e é sustentada nos regimes
multilaterais e também nos acordos regionais com potências hegemônicas.
O México, por exemplo, dentro do Acordo de Livre Comércio
da América do Norte (NAFTA), tornou-se um exportador de pobreza. A renda do
trabalhador industrial mexicano decresceu 50% desde a instituição da área de
livre comércio e 80% da população vive abaixo do nível de pobreza. Os principais
produtos de exportação mexicanos são os derivados da miséria: os maquilados
e as remessas dos imigrantes ilegais, que se equiparam aos investimentos estrangeiros
em valor[20]!
Assim, sob a perspectiva dos países em desenvolvimento,
a experiência da OMC não foi positiva. De fato, as modestas concessões havidas
nas áreas agrícola e têxtil, durante a Rodada Uruguai, não foram suficientes
para assegurar sua competitividade natural, já que cuidadosamente feitas para
manter as vantagens dos países desenvolvidos[21]. Mais ainda, a ordem jurídica
da OMC permitiu o aumento não autorizado dos subsídios ilegais agrícolas pelos
países desenvolvidos de mais de US$ 1 bilhão ao dia. Estes subsídios distorcem
os preços das mercadorias agrícolas e impedem o acesso dos produtos dos países
em desenvolvimento não somente ao território dos países que subsidiam, notadamente
os EUA, a UE e o Japão, mas também eliminam o acesso a terceiros países e, agora,
até passaram a acabar com as próprias indústrias domésticas.
Os EUA, por exemplo, tem hoje nada menos de 10 programas
de subsídios diretos aos produtores agrícolas e, ao menos, outros 10 programas
indiretos. Em termos de volumes absolutos, os subsídios americanos atingiram
hoje o espantoso volume de US$ 150 bilhões, para uma produção agrícola total
de US$ 128 bilhões, o que corresponde a 115% do valor efetivamente produzido.
Estes números assustadores significam que os EUA deixaram de ser uma economia
de mercado no setor agrícola. Os danos causados pelas práticas tanto grotescas
quanto ilegais dos subsídios agrícolas dos EUA são devastadores para países
como o Brasil, que tem 25% do PIB dependente do agronegócio, responsável por
37% do total de empregos no País, principalmente para aqueles mais humildes
e necessitados. Somente os subsídios agrícolas americanos representam 3 vezes
a produção rural brasileira, o que significa que os EUA desembolsam US$ 3,00
dólares em subsídios para cada US$ 1,00 produzido no Brazil. Assim, os países
desenvolvidos colocam suas mercadorias agrícolas no exterior com práticas de
dumping, praticando um preço, na média, pelo menos 1/3 inferior ao custo local[22].
A inclusão das novas áreas no sistema multilateral de
comércio permitiu aos países desenvolvidos acesso aos mercados dos países em
desenvolvimento, mas não permitiu a estes acesso aos mercados daqueles, fechados
por medidas horizontais. O Acordo sobre Medidas de Investimentos relacionadas
com o Comércio (TRIMS) deixou de tratar da escandalosa cumplicidade dos países
desenvolvidos com a questão das fraudes fiscais e da fuga de capitais nos países
em desenvolvimento e da privatização de serviços públicos essenciais. O Acordo
Antidumping, sopitado e pusilânime, permitiu aos EUA a manutenção de sua legislação
doméstica acintosa à eqüidade e aos mais comezinhos princípios de direito internacional[23].
4.4.- Por sua vez, o Acordo sobre Direitos de Propriedade
Intelectual relacionados com o Comércio (TRIPS) subordinou as autoridades nacionais
dos países em desenvolvimento àquelas dos países desenvolvidos por meios do
conceito da proteção “pipeline”. Da mesma forma, o TRIPS deixou de resguardar
adequadamente a questão da implementação de políticas de saúde pública, falha
que resultou inclusive no confronto entre o Brasil e os EUA no tocante às patentes
farmacêuticas, ainda não resolvido, sob o prisma jurídico[24]. O Acordo sobre
Regras de Origem permite o protecionismo institucionalizado nas áreas de livre
comércio e seu uso para desviar as correntes tradicionais de troca, como é o
caso no Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), onde se verificou
o aumento da dependência mercantil do México aos EUA e um devastador efeito
na área do Caribe. Por sua vez, o Acordo Sanitário e Fito-Sanitário apresenta
uma enorme zona cinzenta e áreas de omissão, que permitem o arbítrio.
4.5.- O Acordo sobre Subsídios não é justo nem eqüitativo
aos países em desenvolvimento, colocando Índia, África do Sul e Brasil no mesmo
nível de países como a Suíça e França. O Acordo Salvaguardas tem mais buracos
que um queijo suiço. De mais a mais, práticas altamente danosas aos países em
desenvolvimento como o dumping financeiro e tecnológico, largamente utilizadas
para assegurar domínio de mercado, não foram contempladas[25]. Na área de serviços,
a questão da barreira horizontal consubstanciada nas exigências draconianas
de imigração aos prestadores de serviços dos países em desenvolvimento, permanece
em aberto. Acresce, ainda, que a exceção feita na prática aos EUA, no tocante
ao compromisso único compromete decisivamente a isonomia e, por conseguinte,
a juricidade do sistema multilateral de comércio.
4.6.- Até mesmo o sistema de resolução de disputas, depositário
de tantas esperanças, deixou muitíssimo a desejar nos anos de funcionamento
da OMC. Muitos de seus problemas derivam da falta de regras processuais adequadas,
que comprometem a eficácia e juridicidade do sistema[26]. Outros problemas decorrem
de graves falhas operacionais do sistema de resolução de disputas. Uma revisão
do sistema, que deveria ter tomado lugar em 1999 falhou miseravelmente por falta
de interesse dos países que dele são beneficiários e por incompetência daqueles
prejudicados. Trataremos desta questão com maior profundidade no próximo segmento
desta conferência.
5.1.- O sistema de resolução de disputas da OMC não foi
concebido por juristas ou advogados, mas sim por diplomatas, muito embora fosse
a intenção declarada dos estados signatários do GATT, durante a Rodada Uruguai,
a construção de um edifício assentado sobre os sólidos alicerces da juridicidade.
Desta maneira, o sistema apresenta falhas sistêmicas gravíssimas, tanto pela
falta de um vocabulário claro e inequívoco, bem como pela ausência de institutos
processuais fundamentais para se assegurar o equilibrado e eficaz funcionamento
do instituto. Assim, o sistema é falho no tocante a certos institutos legais
básicos como recovenção e litisconsórcios. A primeira das omissões institucionais
implica em que seja instalado um painel de arbitragem para o pedido original
e outro para a reconvenção, com árbitros diferentes, embora as partes sejam
as mesmas e o objeto conexo, como ocorreu com a primeira rodada de contenciosos
Brasil versus Canadá e Canadá versus Brasil, na questão da indústria aeronáutica.
Essa situação implica na tangível possibilidade que as decisões dos dois, três
ou quatro painéis tratando de matérias conexas sejam diversas e até contraditórias.
Por sua vez, a segunda das omissões pode resultar na formação de díspares painéis,
com árbitros diferentes e termos de referência diversos, que pode resultar em
diferentes decisões para a mesma questão de direito.
5.2.- Outra falha do sistema diz respeito à impossibilidade
da alegação de preliminares, como por exemplo a questão de conflitos entre tratados,
que se tornou relevante em painéis de arbitragem julgando recentes casos de
interesse do Brasil e Índia. A argüição de preliminares é de fundamental importância
para qualquer processo jurisdicional, porque é aí que se propugna pela incompetência
de foro e pela incompetência de juízo, questões sabidamente basilares, principalmente
no âmbito do direito internacional público. Da mesma forma, o objeto da ação
não é dado pela parte, mas sim pela Divisão Jurídica do Secretariado da OMC,
o que dá ensejo a graves falhas operacionais, como veremos mais adiante.
5.3..- O sistema de resolução de disputas da OMC falha
ainda ao não admitir o instituto da reconvenção, o que exige a formação de dois
painéis de arbitragem, um para a ação, outro para a reconvenção, com termos
de referência possivelmente desencontrados e com árbitros diversos. O tratado
de regência, O Entendimento sobre Resolução de Disputas, falha ainda por não
dispor regras sobre a fase processual probatória e normas atinentes à chamada
evidência ou mesmo para a perícia técnica ou especializada. Assim, se na instância
superior, o painel não houver conduzido a fase probatória a contento, o painel
de apelação não poderá, por exemplo, converter o julgamento em diligência.
5.4..- O sistema falha ainda na inexistência de um mecanismo
eficaz de sanções, com a exeqüibilidade de obrigações de fazer e de não fazer.
Ao invés, as sanções previstas dizem respeito ao cancelamento de concessões
tarifárias outorgados ao parceiro perdedor, por decorrência da aplicação da
cláusula de nação mais favorecida, na medida dos prejuízos sofridos. Assim,
uma ilegalidade cometida no setor do aço, por exemplo, pode ser sancionada com
uma majoração tarifária em mercadorias agrícolas, o que não tem o condão de
remediar o dano e punir o setor infrator. Ao contrário, pune-se o inocente e
o fluxo comercial bilateral saudável entre vencedor e perdedor.
5.5.- Outra falha sistêmica do sistema de resolução de
disputas da OMC diz respeito à confidencialidade dos procedimentos, que impede
a devida governança e os controles democráticos nos países membros da organização.
Igualmente, não faz sentido a existência de um sistema de consultas embutido
num sistema contencioso. As regras contenciosas devem tratar do litígio, ficando
abertas sempre as oportunidades de consultas a respeito do objeto da lide. Chega
a ser escandaloso que o sistema de resolução de disputas da OMC não tenha um
processo físico ou virtual, o que diminui dramaticamente a credibilidade do
mesmo. Mais ainda os prazos para as diversas fases do processo não são universais,
podendo ser aplicados idiossincraticamente, a uma parte e a outra, com grande
injustiça, pelos painéis. Por último, como pode um sistema de resolução de disputas
no direito internacional público pretender sustentar a prevalência do direito
e a juridicidade sem contemplar a participação das profissões legais no processo?!
5.6.- Por outro lado, o sistema de resolução de disputas
da OMC tem inúmeras falhas operacionais a comprometer irremediavelmente a lisura
do procedimento. A primeira delas diz respeito à falta de transparência. A Divisão
Jurídica do Secretariado da OMC na prática escolhe os árbitros; define os termos
de referência, ou o objeto do litígio; e presta assessoria mandatória tanto
aos painéis de primeira instância, como ao grau de apelação, já que nem um nem
outro tem estrutura administrativa própria. A divisão jurídica do secretariado
da OMC tem uma composição altamente etnocêntrica, dominada por nacionais das
principais potências. A OMC, em flagrante violação dos mais básicos princípios
de governança, inclusive daqueles santimonialmente recomendados pela OCDE, tem
se recusado, por escrito, a fornecer a nacionalidade dos componentes de sua
divisão jurídica, o que compromete de ampla forma sua credibilidade e dos seus
serviços.
5.7.- Assim, a divisão jurídica da OMC tem sido corretamente
acusada de influenciar indevidamente o processo decisório dos painéis, redigindo
laudos. Da mesma forma, tem sido corretamente acusada de tentar criar jurisprudência
criadora de normas e de impor na prática a doutrina “stare decisis”, ambos institutos
vedados pelo direito internacional. Por outro lado, os laudos são freqüentemente
imprecisos; sua execução confusa e controversa e, por conseguinte, os painéis
são duplicados ou multiplicados desnecessariamente. Acresce ainda que o sistema
tem demonstrado cabalmente um viés contrário aos países em desenvolvimento.
5.8.- Tamanho rol de falhas, imperfeições e distorções
fez com que o sistema de resolução de disputas da OMC padeça de inúmeras bizarrias
e idiossincrasias grotescas, algumas das quais tive oportunidade de elencar
num recente livro[27]. A elas pode-se, agora, acrescer a decisão do painel no
caso dos EUA versus Austrália[28] na questão de bancos de couro, onde decidiu-se
condenar uma empresa privada, portanto fora da jurisdição da OMC, a devolver
subsídios. Sua tonalidade tragicômica seria menos leve se tal sistema não tivesse
decidido, em devastadora maioria dos casos, contra os países em desenvolvimento,
quando em confronto com os países desenvolvidos. Até mesmo os apóstolos do imperialismo
reconhecem o favorecimento aos países desenvolvidos pelo sistema de resolução
de disputas da OMC[29].
5.9.- Dos 51 casos decididos definitivamente na OMC[30]
desde sua criação, 18 foram pertinentes a confrontos entre países em desenvolvimento
e desenvolvidos. Destes, 13 foram ganhos pelos países desenvolvidos, mais de
dois terços, e apenas quatro pelos países em desenvolvimento, dos quais dois
com recusa de implementação. O sistema mostrou-se ainda direcionado contra os
países em desenvolvimento, vítimas de quase 60% dos casos havidos. De mais a
mais, algumas dessas derrotas representam tentativas institucionais de mudança
dos tratados em detrimento da ordem jurídica e dos interesses dos países em
desenvolvimento[31]. Apesar da propaganda oficial do governo no sentido contrário,
o Brasil foi o grande perdedor do sistema.
6.1.- O Acordo de Livre Comércio da América do Norte
(NAFTA), assinado em 1992, mas que entrou em vigor em 1.1.1994, entre os EUA,
México e Canadá, nasceu, de um lado, das frustrações dos EUA decorrentes da
não-imposição de sua vontade na primeira fase da Rodada Uruguai e, de outro,
do desejo de criar um mercado regional cativo. O fato que o NAFTA foi negociado
pelo México por uma administração notoriamente corrupta e incompetente, que
se caracterizou, nas palavras de C. Fred Bergsten, “pela aceitação virtual de
tudo o que se lhe pediu e por fazer todas as concessões”, permitiu aos EUA a
formatação de um modelo idiossincrático de acordo regional comercial altamente
vantajoso, para aplicação a outros países. Este modelo tem as seguintes características
básicas[32]:
6.1.1 – AGENDA AFIRMATIVA:
a) criação do modelo do cubo e dos raios[33], segundo
o qual as trocas industriais e de serviços, em como os investimentos de terceiros,
vem do cubo para os países raios;
b) a abertura dos mercados de serviços dos países raios;
c) redução tarifária nos países raios;
d) formulação de regras de origem de modo a favorecer
largamente os produtos do bloco, particularmente os do país cubo;
e) fluxo livre de moedas e garantia de conversibilidade
dos estados raios para os créditos públicos ou particulares do cubo;
f) imposição de critérios legislativos próprios do cubo
aos raios nas mais diversas áreas, mas notadamente na área trabalhista, previdenciária
e no Judiciário;
emasculação do Judiciário dos países raios para questões
comerciais, mediante o desvio de competência para o Judiciário cubo e para tribunais
arbitrais; e
h) colheita precoce do que for possível.
6.1.2 – AGENDA DEFENSIVA:
a) preservação dos subsídios agrícolas do cubo;
b) manutenção da legislação unilateral idiossincrática,
incluindo a pertinente a medidas anti-dumping;
c) preservação do regime constitucional que coloca a
legislação ordinária acima dos tratados internacionais, incluindo os comerciais;
d) admissão aos países raios apenas de acesso ao fornecimento
ao país cubo de produtos baratos de consumo com baixo valor agregado; e
e) dilação de quaisquer concessões para o futuro o mais
distante possível, preferencialmente no âmbito do sistema multilateral da Organização
Mundial do Comércio (OMC).
6.2 – Tal modelo funcionou admiravelmente bem, para os
EUA, no âmbito do NAFTA. Como resultado, as exportações norte-americanas para
o México cresceram 50% e a dependência comercial de trocas mexicanas com os
EUA aumento de, aproximadamente, 72%, para cerca de 90% nos anos subseqüentes
à assinatura do NAFTA. Mais ainda, os EUA dominaram as principais áreas dos
mercados de serviços, principalmente no setor financeiro, o mais relevante do
segmento, que foi totalmente desnacionalizado. Curiosamente, já em 1995, Noah
Chomsky previu tal acontecimento e prognosticou ominosamente que o México perderia,
como conseqüência, “a soberania para formular planos econômicos e promover um
desenvolvimento independente”[34]. E assim foi. Em 2001, um estudo do Instituto
de Pesquisas Econômicas da Universidade Autônoma do México, conduzido pela Doutora
Leticia Campos, chegou à nada surpreendente conclusão de que “o governo mexicano
já perdeu o comando da economia local” diante da realidade de que 95% do mercado
daquele país, incluindo o setor financeiro, encontra-se sob o controle do capital
estrangeiro[35].
6.3 – Nas outras áreas de serviços, o México perdeu a
economia de escala devido a falta de acesso de seus nacionais aos mercados dos
EUA (e também do Canadá), sujeitos a uma infame e reduzidíssima quota de 5.000
pessoas por ano. Conseqüentemente, o setor nacional de serviços de alta especialização
mexicano deixou de existir. Por exemplo, o México tem apenas um milhão e meio
de usuários de internet, contra dez milhões e quatrocentos mil de usuários no
Brasil e de um milhão na Argentina, que tem um terço da população mexicana.
Seus prestadores de serviços ficaram relegados às tarefas meniais, como cabeleireiras,
cozinheiros, atendentes, motoristas, etc.
6.4 – A UE aprendeu rapidamente as lições dos EUA, tendo
adotado quase que a totalidade de sua agenda[36] para a negociação de tratados
comerciais regionais com países em desenvolvimento, que agora atingiu o número
impressionante de 27 acordos diversos, inclusive um com o México[37]. Outros
15 tratados comerciais estão presentemente sendo negociados pela UE. Por sua
vez, os EUA tem, no momento, três acordos regionais[38] e perseguem um número
grande deles, inclusive a “Área de Livre Comércio das Américas” (FTAA), esforços
que estão sendo prejudicados pela falta de autorização apósita do poder legislativo
ao poder executivo[39].
6.5 – Para países como a Argentina e o Brasil, o modelo
consagrado pelo NAFTA, que é a plataforma da ALCA, seria um grande desastre
econômico e social, que certamente teria conseqüências políticas graves[40].
Em primeiro lugar, o setor agrícola, em ambos os países, seria destruído pelos
subsídios praticados pelos EUA, no valor de US$ 150 bilhões. Isto comprometeria
os setores de trigo, soja, algodão e açúcar, este último responsável por cerca
de 1.200.000 empregos rurais no Brasil e 300.000 na Argentina. O setor algodoeiro
gera aproximadamente 500.000 empregos apenas no Brasil. Por conseqüência, os
segmentos de reciclagem de proteína vegetal em animal, tanto granjeiro, como
suíno e bovino, seriam dramaticamente afetados de forma adversa. À guisa de
comparação, no México o PIB agrícola diminuiu 17.6% durante o NAFTA, sendo que
a produção de grãos caiu 27.6% e a de carnes decresceu 34.6%[41]. Por sua vez,
a importação de alimentos aumentou de US$ 1,7 bilhão em 1982 para US$ 8,6 bilhões
em 99 decorrente da perda de competitividade do setor agrícola local. Mais ainda,
no México do NAFTA, o setor açucareiro encolheu cerca de 34%[42]. No Brasil,
um efeito semelhante, muito provável no cenário da ALCA, ameaçaria a paz social
no campo!
6.6 – Mais ainda, os setores de serviços de alta complexidade
seriam desnacionalizados, inclusive pela perda de economia de escala decorrente
da falta de acesso aos mercados dos EUA por decorrência das barreiras horizontais
de movimento de prestadores de serviços. Assim, os bancos comerciais serão estrangeiros
e os de investimentos serão situados em Nova Iorque. As Bolsas de Valores e
de Mercadorias regionais desaparecerão. Os advogados, auditores, contadores
e consultores especializados em tarefas de alta complexidade serão os estrangeiros.
O mesmo ocorrerá com os serviços médicos e hospitalares, de arquitetura, de
engenharia e de informática. O setor educacional sofrerá grandemente pois estará
fornecendo a educação mínima necessária para o desempenho de tarefas meniais,
como servir merendas gordurosas e refrigerantes gasosos.
6 .7 – De fato, os setores domésticos de serviços dos
raios serão condenados à função de “depósitos de mão de obra não-qualificada”[43],
fábricas de pobreza. No sistema formatado pelo NAFTA, um país é competitivo
na direta dimensão de sua miséria. No México de hoje, 80% da população vive
abaixo do nível de pobreza. Os salários industriais caíram de US$ 127 em 1982
para US$ 74 em 1999. O país virou um exportador de miséria, de vez que os elementos
mais ativos da economia são as remessas dos emigrantes, de cerca de US$ 6.3
bilhões em 1999, e as maquiladoras. A emigração do México para os EUA aumentou
de 278.229 entre 1991 e 1997, para 366.000 entre 1998 e 1999, resultado do modelo
econômico perverso que gera um défice anual de 500 mil empregos[44].
6.8 – Por sua vez, numa ALCA erigida sobre os infames
alicerces do NAFTA, o setor de audiovisuais mostrará apenas produtos americanos,
confeccionados a um preço baixíssimo pela escala, o que eliminará a possibilidade
de competição. Desta forma, a produção cultural dos demais países, outros que
os EUA, entrará em inexorável declínio. As línguas regionais tornar-se-ão um
patoá do dialeto americano.
6.9 – Na área industrial, devido ao fato de que as tarifas
sul-americanas são ainda relativamente altas, a celebração de um acordo comercial
regional com um poder hegemônico tem o condão de alienar o outro. Os produtos
manufaturados pelo poder excluído perderão drasticamente sua competitividade.
No caso, tanto no Brasil como na Argentina, dentre EUA e UE, o principal parceiro
econômico é a UE. Mais ainda, aproximadamente 60% dos investimentos estrangeiros
recebidos na Argentina, como no Brasil, vem da UE. No Brasil, 82% dos investimentos
estrangeiros são hoje direcionados ao setor de serviços!
6.10 – A diversidade dentre os países tenderá a ser ignorada.
Padrões e valores sub-culturais serão impostos para a legislação interna, para
as relações sociais, para a vida acadêmica e cultural, para a expressão artística
e para o funcionamento dos Poderes Judiciários. Decorrerá um agravamento do
fenômeno perverso da globalização, magistralmente lembrado por Ernesto Sabato:
“La humanidad está cayendo en una globalización que no tiende a unir culturas,
sino a imponer sobre ellas el único patrón que les permita quedar dentro del
sistema mundial”[45]. Haverá, por conseguinte, uma grande derrogação de soberania
também na formulação de política de desenvolvimento social e de afirmação individual.
Como corrolário natural, seguir-se-á a transferência total de soberania na formulação
das políticas monetária e econômica.
6.11 – Acresce que Argentina e Brasil, bem como Paraguai
e Uruguai, continuarão vítimas do unilateralismo e do arbítrio praticado pelos
EUA mediante suas medidas idiossincráticas, como no caso do anti-dumping. Seu
direito constitucional continuará a colocar seu ordenamento jurídico interno
acima de suas obrigações internacionais e a legislação de implementação de um
eventual tratado subordinará sua eficácia às normas domésticas. Um tal acordo
comercial valerá contra os países raios, mas não necessariamente contra o cubo.
6.12 – Um exemplo prático e interessante a respeito da
questão da hierarquia das normas do direito americano e o relativo à matéria
dos transportes rodoviários. O NAFTA assegurou aos transportadores rodoviários
mexicanos o acesso ao território dos EUA. Todavia, as barreiras horizontais
administrativas impostas por este país impediu sua ocorrência. Inconformado,
México solicitou a formação de um painel de arbitragem para dirimir a questão,
havendo recentemente prevalecido a seu favor. Derrotado no painel, o Congresso
americano imediatamente aprovou uma lei interna derrogando os direitos mexicanos
provenientes do NAFTA.
6.13 – Mas este cenário dantesco não seria largamente
compensado pelo acesso ao mercado dos EUA dos produtos de consumo de baixo valor
agregado, que requerem o emprego de mão de obra barata? – Absolutamente, não!
O modelo de importação de tais produtos pelos EUA já está esgotado e não se
presta para a ampliação em grande escala. De fato, os EUA já tem um défice comercial
de US$ 500 bilhões por ano! Até que ponto o consumidor americano tem condições
de engordar mais ou de comprar um maior número de camisas e de calçados esportivos
do que já adquire? Até que ponto o sistema bancário norte-americano vai conseguir
sustentar a alavancagem e endividamento financeiro do consumidor, quando mais
expandir o que já é claramente excessivo? Lembre-se que os países da Ásia já
exportam para os EUA cerca de 37% do Produto Interno Bruto (PIB) regional[46]
e buscam empenhadamente a formulação de estratégias alternativas, regionais
e internacionais, pelo esgotamento do presente modelo. Dentre tais alternativas
está a criação de uma rede trocas regionais apoiada por US$ 100 bilhões de suporte
monetário dentre os membros da ASEAN mais Japão, China e Coréia do Sul[47].
7.1.- Vimos como a teoria do realismo orienta os EUA
à dominação das estruturas multilaterais existentes com o objetivo da obtenção
de vantagens comerciais e políticas que possam promover a prosperidade do povo
norte-americano. Esta teoria foi expandida após o final da chamada guerra fria
para se tornar também cânone de segurança nacional daquele país. Como o sistema
multilateral permite apenas uma larga vantagem hegemônica e não uma dominação
econômica completa, os estrategistas americanos procuraram aproveitar-se dos
pactos regionais de comércio para atingir o seu objetivo. De fato, segundo tal
linha de raciocínio, não haveria lugar melhor para começar do que na América
Latina, região definida pela Doutrina Olney, em prática ininterrupta pelos EUA
desde o final do século 19, como sujeita a “direito hegemônico” daquele país[48].
Já em 1822, o embaixador Mexicano, Zozaya, escrevia a respeito dos EUA “Eles
tem um profundo amor por nosso dinheiro, não por nós, e não conseguem celebrar
um tratado de aliança ou comércio a não ser no seu direto interesse, sem nenhum
pensamento de reciprocidade”[49].
7.2.- Este infame imperialismo norte-americano, às vezes
denominado eufemisticamente de unilateralismo agressivo[50], tem crescido desde
o ocaso da URSS, porque o desaparecimento da competição política trouxe a eliminação
da auto-contenção, da parcimônia e da moderação no trato dos países em desenvolvimento,
dos estados clientes e dos demais países. Assim, o mundo assiste estupefato
à derrocada da ordem jurídica nas relações internacionais e a falência da transposição
dos valores democráticos e do império da lei dos ordenamentos jurídicos internos
para as relações entre estados soberanos. Mais ainda, o mundo testemunha um
militantismo fundamentalista do exercício arbitrário das próprias razões nas
relações internacionais pelos EUA, em detrimento da ordem jurídica e de princípios
basilares do direito.
7.3.- Desgraçadamente para o direito, para a justiça
e para a moral, esta ação imperialista não deixa de ter um determinado suporte
nas relações internacionais vinda da parte de países que, como hienas, desejam
beneficiar-se marginalmente dos despojos da expoliação organizada da maior parte
dos estados e da população mundial. Este apoio existe da parte de países que
chegaram ao despautério de alinharem automaticamente suas políticas exteriores
à dos EUA, como no caso do Reino Unido, e até certo ponto, da UE. As manifestações
diversas e fenômenos correlatos desta ação espúria tem sido chamadas de “globalização”,
que não dever ser confundida com internacionalismo ou internacionalização. Enquanto
aquela é o resultado de um processo predatórios, estes são fenômenos resultantes
de valores positivos como a solidariedade, o conhecimento, a compreensão, o
direito e a justiça.
7.4.- Assim, já tive oportunidade de definir o processo
de globalização como a continuada exploração sistêmica dos países em desenvolvimento
por um núcleo central de países desenvolvidos, mediante a imposição de valores
e padrões culturais etnocêntricos, bem como de normas unilaterais e não eqüitativas,
sob o manto de uma falaz juridicidade internacional, administrada pela especiosa
ideologia do chamado livre comércio, por uma organização internacional sem compromissos
com a prevalência do estado de direito e da justiça nas relações internacionais.
7.5.- No sistema multilateral, a natureza perversa da
extremada dominação comercial não tem o condão de induzir um respeito à ordem
jurídica que a criou, por sua própria fonte inspiradora, os EUA, tal o desprezo
que por ela tem, cientes da realidade de sua concepção. Assim, os EUA locupletam-se
desta ordem jurídica infame, mas a ela não se submetem. Na hierarquia das normas
de seu direito constitucional, os EUA colocam suas leis federais acima dos tratados
internacionais. Mais ainda, na legislação interna de adoção dos tratados internacionais,
condicionam sua validade à compatibilidade com o direito doméstico, ao contrário
dos demais países. Isto vale até mesmo para os tratados comerciais, com cláusula
de compromisso único, como os da OMC. Desde 1992, os EUA não assinam nenhum
acordo comercial internacional sem que este esteja subordinado ao seu ordenamento
jurídico interno. Foi assim no caso do NAFTA, daqueles acordos comerciais mais
recentes com Israel e com a Jordânia.
7.6.- Acresce que os EUA não são signatários de convenções
internacionais que visam aumentar a juridicidade nas relações entre estados
soberanos, como a Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados. Tampouco são
signatários do Estatuto do Tribunal Penal Internacional de Roma de 1998, que
visa “inter alia” o combate ao crime organizado, porque é bastante provável
a hipótese de que inúmeros de seus agentes de direito público interno fossem
processados de acordo com o direito internacional. Mais ainda, o legislativo
federal dos EUA propôs legislação doméstica com o objetivo de neutralizar tal
meritória iniciativa internacional.
7.7.- Por outro lado, as negociações regionais são conduzidas
pelos EUA com o único objetivo de aprofundar as vantagens comerciais e econômicas
hegemônicas. Suas leis domésticas prevalecerão sobre qualquer acordo. Vimos
que a iniciativa da ALCA, sob a perspectiva econômica, seria um desastre para
os países do Mercosul e, especialmente, para o Brasil. Teme-se que o governo
brasileiro, apesar de fortes reações da sociedade civil e do legislativo pátrio[51],
tenha levado as negociações a um ponto muito adiantado, assumindo compromissos
que comprometerão o futuro do País. Alguns agentes do governo brasileiro têm
defendido o argumento falacioso de que como os países das Américas, em conjunto,
representam os maiores parceiros comerciais do Brasil, uma não participação
na ALCA teria o condão de alienar esta corrente comercial. Trata-se de um falso
dilema. Basta negociar de maneira competente com todos, isoladamente ou em blocos
específicos.
7.8.- Assim, continuam ainda inteiramente válidas as
conclusões de um grande brasileiro, Eduardo Prado[52], numa obra intitulada
‘A Ilusão Americana”, escrita em 1893, numa das primeiras análises das relações
bilaterais entre os EUA e o Brasil, mas também pertinentes para toda a América
Latina:
” Que a história da política internacional dos EUA não
demonstra por parte daquele país, benevolência alguma para conosco ou para com
qualquer república latino-americana;
Que todas as vezes que tem o Brasil estado em contato
com os EUA tem tido outras tantas ocasiões para se convencer que a amizade norte-americana
é nula quando não é interesseira”; e
Que “toda a tentativa para, em troca de qualquer serviço,
colocar a pátria livre e autonômica em qualquer espécie de sujeição para com
o estrangeiro é um ato de inépcia e é um crime.”
7.9.- Concluo com as palavras do cacique Delaware, Pachgantschilias,
proferidas em 1787, e que se constituíram no epitáfio de sua grande nação[53]:
” Remember that this day I have warned you to beware
of such friends as these. I know the Long-knives. They are not to be trusted.”
Senhoras e Senhores, muito obrigado.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).