SÃO PAULO – A inclusão dos temas de propriedade intelectual no sistema multilateral de comércio, com os tratados de Marraqueche, em 1994, representou uma vitória do oligopólio internacional, em detrimento dos países em desenvolvimento, como apontei, ainda em 1995, no meu livro “A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai”. De fato, a matéria já era objeto de tratamento da parte de outro organismo internacional, a Ompi (Organização Mundial da Propriedade Intelectual). Ademais, não se pode a rigor dizer que propriedade intelectual seja objeto de comércio.
Os EUA (Estados Unidos da América) desejavam incluir sanções internacionais às violações à propriedade intelectual no regime multilateral, o que conseguiram no âmbito da OMC (Organização Mundial de Comércio), convertida em agente arrecadador do oligopólio internacional. Como bem abordado por Adhemar Bahadian e Mauricio Carvalho Lyrio, diferentemente, a Ompi “sempre procurou equilibrar os direitos de monopólio das patentes com as contrapartidas necessárias, como a transferência de tecnologia e o impacto social do uso da patente”.
A formatação do Acordo sobre Aspectos Relacionados ao Comércio dos Direitos à Propriedade Intelectual, Incluindo o Comércio em Bens Contrafeitos (Acordo Trips) atendeu aos interesses das grandes empresas multinacionais e, assim, excluiu de seu âmbito o conhecimento tradicional. Essa omissão deixa, por exemplo, sem proteção a medicina tradicional na China, na África e no Brasil. Note-se que, já no final da Rodada Uruguai, apenas 5 países desenvolvidos tinham mais de 84% das novas patentes.
Da mesma forma, o Acordo Trips trata das patentes, marcas e direitos autorais como valores absolutos, sem as adequadas exceções em matéria de saúde pública, desenvolvimento econômico e social e direitos humanos. O insuspeito Jagdish Bhagwati comentou a respeito: “Os grupos de pressão ligados aos interesses empresariais do setor farmacêutico e de computação distorceram e deformaram uma importante instituição multilateral, afastando-a de sua missão comercial e razão de ser e transformando-a em agência de cobrança de royalties”.
Ao lado do regime tanto distorcido como iníquo do tratamento da propriedade intelectual no âmbito multilateral da OMC, os países desenvolvidos mantiveram uma enorme estrutura de subsídios públicos cuidadosamente excluídos do elenco daqueles considerados ilegais no âmbito do Acordo Subsídios do regime multilateral. Com tal manobra, asseguram-se tanto do monopólio de desenvolvimento de tecnologias, bem como de seu licenciamento. De outra forma, impedem que políticas públicas sejam exercidas pelos países em desenvolvimento em atenção às demandas decorrentes dos direitos humanos.
Assim, uma das reformas imperativas do regime jurídico da OMC, na perspectiva dos países em desenvolvimento, é a completa revogação do Acordo Trips, ou ao menos sua substancial modificação. De fato, a questão do Acordo Trips contribuiu decisivamente para a desmoralização internacional da OMC e para o seu balanço escandalosamente tendencioso em favor dos países desenvolvidos.
Por outro lado, da parte dos EUA, procura-se introduzir nos acordos bilaterais ou regionais de comércio, como aquele no âmbito da ALca (Área de Livre Comércio das Américas), uma extensão dos regimes restritivos da propriedade intelectual com inter alia novas obrigações referentes a prazos de patenteamento, confidencialidade e licenciamento.
O embate contra o oligopólio no regime jurídico da propriedade intelectual deverá continuar em mais de uma frente.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).