SÃO PAULO – O Acordo Geral de Tarifas e Comércio de 1947 (o GATT 47) já tratava, em seu artigo 19, da ação de emergência a respeito da importação de determinados produtos, quando o volume de ingressos venha a ser de tal montante que possa trazer, ou esteja causando, danos graves ao setor equivalente do país importador.

Com a reformulação do regime multilateral de comércio, havida com a assinatura do GATT 94 e demais acordos da Rodada Uruguai, a questão das ações emergenciais foi tratada em dois tratados distintos: O Acordo Salvaguardas e o Acordo Agricultura. O primeiro dá o tratamento de regência genérico a respeito da matéria enquanto o segundo é aplicável especificamente ao setor agrícola, notoriamente idiossincrático.

Por outro lado, como o artigo 24 do GATT 47 permite pactos regionais de comércio, houve uma proliferação no tratamento das ações emergenciais e das salvaguardas, quase que na mesma medida do número de acordos. Do exame do direito comparado, verifica-se em primeiro lugar que os regimes regionais de comércio sempre têm reconhecido a superioridade hierárquica do regime multilateral, admitindo aquilo que chamei de sua inferioridade intrínseca.

Assim, tais acordos regionais de comércio têm procurado obter para seus signatários vantagens adicionais às conferidas pelo regime multilateral. Contudo, com a maior liberalização regional, com referência àquela da OMC, aumenta, ao invés de diminuir, o risco de danos graves às economias dos países que seguem tal senda tão em voga no momento. Por decorrência, os Estados signatários dos acordos regionais de comércio passaram a contemplar uma gama variada de ações emergenciais.

Dessa maneira, o Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), de dezembro de 1992, assinado entre o Canadá, os Estados Unidos da América (EUA) e o México, resguardou em seu artigo 802 todos os direitos e obrigações decorrentes do artigo 19 do GATT 47. Todavia, o NAFTA excluiu as importações dos signatários do pacto de ações emergenciais, a menos que tais importações representem um volume substancial do total ou que contribuam ao dano grave ou ameaça de dano grave.

O Acordo de Livre Comércio entre a União Européia (UE) e a República da África do Sul, de 2000, por exemplo mantém a salvaguarda agrícola, em seu artigo 16, bem como a salvaguarda genérica, no artigo 15. Com relação ao regime multilateral, esse acordo, como os demais de caráter regional, trata de suavizar as medidas de impacto das medidas emergenciais, trazendo fórmulas mais detalhadas e seguras para o cálculo da determinação do dano e mesmo no tratamento das compensações.

Por outro lado, o Acordo de Livre Comércio entre a UE e o México, também do ano 2000, não tratou da salvaguarda agrícola mas, por sua vez, procurou de outra forma proteger as economias dos signatários de danos através de quotas agrícolas e de um sistema de revisão das concessões feitas no setor, de acordo com o artigo 10. Porém, esse acordo manteve o regime de salvaguardas para as trocas comerciais entre seus signatários, conforme o artigo 15, expandindo o âmbito da regulamentação das compensações, conforme o artigo 15, 4, 5, 6, 7 e 8.

Por sua vez, o Acordo de Livre Comércio entre a UE e o Chile trata, em seu artigo 73, da cláusula de emergência para o setor agrícola, conforme facultado pelo artigo 5 do Acordo Agricultura, facultando numa situação de grave dano ou de ameaça de dano grave a suspensão dos benefícios tarifários do acordo ou ainda a imposição da tarifa aplicável conforme o critério de nação mais favorecida ou, ainda, a tarifa básica consolidada para efeitos de liberalização no âmbito do pacto regional em questão. Esse acordo inova ao permitir as salvaguardas genéricas, em seu artigo 92, apenas quando existir um substancial interesse exportador do país afetado. O dispositivo em questão deve-se, certamente, ao fato de que o mercado interno do Chile é diminuto e seu interesse agrícola maior está no acesso aos mercados dos seus parceiros, naquilo em que tem uma vantagem comparativa marcante.

Ainda com relação ao Chile, o Acordo de Livre Comércio com os Estados Unidos da América (EUA) celebrado com aquele país, preserva, em seu artigo 8.6, todas as ações emergenciais genéricas derivadas do regime multilateral de comércio, bem como cria um regime especial de salvaguardas para os danos graves ou ameaças de dano grave causados pela liberalização bilateral promovida pelo tratado.

De acordo com esse regime especial, configurados os pressupostos legais, fica autorizada a suspensão de qualquer redução tarifária adicional ou, ainda, a imposição de tarifa no patamar de nação mais favorecida. O Tratado de Livre Comércio assinado entre os EUA e a Austrália em 2004 adota solução assemelhada em seu artigo 9.1.

De maneira semelhante, o Acordo de Livre Comércio entre o Chile e os países da Associação de Livre Comércio da Europa (EFTA), traz o mesmo tratamento dicotômico: de um lado, assegura-se a prevalência do regime genérico da OMC, conforme seu artigo 20 e, de outro, é criado um regime de ação emergencial para os danos e ameaças de dano havidos em decorrência da liberalização bilateral, com a suspensão de redução tarifária adicional ou, ainda, a imposição de tarifa no patamar de nação mais favorecida.

O Mercado Comum do Sul (Mercosul), criado pelo Tratado de Assunção de 1991, uma iniciativa de notável mérito político e econômico, padece todavia de um arcabouço jurídico mais compatível com o estado de evolução jurídica dos acordos regionais de comércio, como relatado acima. Tendo precedido a todos aqueles, resulta evidente que os termos do Tratado de Assunção não puderam refletir a benéfica experiência alheia.

Dessa forma, conforme já pude expor em meu artigo “Salvaguardas no âmbito do Mercosul”, o Anexo 4 do Tratado de Assunção, em seu artigo 5, dispôs que “em nenhum caso a aplicação de cláusulas de salvaguarda poderá estender-se além de 31 de dezembro de 1994”. Esse dispositivo foi fundado na ficção, ainda não realizada, de que naquela data haveria sido formado o mercado comum entre os Estados parte do pacto comercial, cuja natureza jurídica é ainda idiossincrática. Esse dispositivo é ilegal face à ordem jurídica multilateral, conforme analisado naquele trabalho.

Por outro lado, a falta de uma maior densidade legal e de uma ampla juricidade no Mercosul foi causada em parte por uma opção diplomática pelas tratativas políticas ao invés do recurso a sistemas jurisdicionais. Tal opção foi induzida pelas marcantes diferenças sócio-econômicas entre os Estados membros do pacto de livre comércio.

Todavia, a opção diplomática pelas tratativas políticas resultou vítima do próprio sucesso comercial da iniciativa, que gerou um enorme incremento das relações econômicas regionais, com o esperável grande número de disputas resultantes. Pela falta de mecanismos de maior juricidade, os conflitos comerciais tendem a gerar crises políticas, como aquelas que temos observado nos últimos tempos. A boa vontade diplomática existente resulta frustada pela inexistência de mecanismos que possam afirmar a eqüidade.

Assim, parece importante que, no âmbito do Mercosul, seja feita uma reforma para a promoção de um aggiornamento, uma atualização da infraestrutura legislativa, bem como uma consolidação de suas normas para maior clareza. Essa reforma deveria contemplar uma clara definição da natureza jurídica do bloco, e bem assim a introdução de normas substantivas que promovam a adequação legislativa com relação a outros tratados bilaterais, como também ao próprio regime multilateral da OMC, que é posterior ao Mercosul. Para além das normas substantivas, a reforma deveria criar um eficaz sistema de resolução de disputas, que tire da área política a árdua e impossível missão de administrar uma crise política para cada setor comercial afetado por situações emergenciais.

A reforma substantiva do Mercosul deveria, ao meu ver, promover a clara admissão de três vertentes de ações emergenciais. A primeira delas, seria, à semelhança do direito comparado, prever danos graves ou ameaças respectivas como potencialmente resultantes da própria liberalização levada a efeito dentro do bloco. A segunda deveria contemplar a situação específica e idiossincrática do setor agrícola, conforme facultado pelo artigo 5 do Acordo Agricultura. Por último, a terceira, deveria ser a aceitação clara e inequívoca do regime global de salvaguardas da OMC, representado pelo Acordo Salvaguardas, de resto assinado por todos os Estados Membros.