SÃO PAULO – No final da década de 70, os estrategistas dos EUA (Estados Unidos da América) e da Europa perceberam que, com um regime legal internacional protecionista, suas empresas poderiam ter uma fase de grande prosperidade. A estrutura jurídica multilateral da OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual) era julgada inadequada para tais propósitos, já que sempre procurou equilibrar o direito de propriedade com outros valores dignos de serem preservados. Ademais, a OMPI não tinha um foro arbitral com poderes de sanção contra os Estados violadores dos direitos de propriedade intelectual.
Assim, as grandes potências econômicas inseriram na agenda de negociações da Rodada Uruguai do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), lançada em Punta del Este em 1986, a questão da propriedade intelectual que, a rigor, nada tem a ver com comércio internacional. O GATT já tinha um sistema de resolução de disputas e a OMC (Organização Mundial do Comércio), que o sucedeu, passou a dispor de um sistema com um mecanismo de pressões mais eficiente que o anterior.
Os países em desenvolvimento opuseram-se baldamente à inclusão do setor de propriedade intelectual no regime jurídico multilateral do comércio, que ocorreu em 1994, como Acordo sobre Aspectos relacionados ao Comércio dos Direitos à Propriedade Intelectual, incluindo o TRIPS (Comércio em Bens Contrafeitos), acrônimo decorrente do nome do tratado em língua inglesa. A partir daquele período, programas de computador passaram também a gozar da proteção conferida pelo regime de patentes.
Como resultado, o valor global de receitas de propriedade intelectual, que se situava num patamar de aproximadamente US$ 10 bilhões em 1986, passou a cerca de US$ 35 bilhões em 1994 e se situa em pouco mais de US$ 100 bilhões em 2005. Poucas atividades empresariais tornaram-se tão rentáveis como resultado da proteção conferida por um regime jurídico internacional.
Na formatação jurídica tradicional, o sistema de proteção à propriedade intelectual é composto de quatro áreas: os direitos de autor; as marcas; as patentes; e os segredos industriais. A princípio, a classificação apresenta-se boa, mas sua regulamentação e, principalmente, sua relação com as demais normas do comércio internacional apresenta-se complexa e plena de efeitos nefastos.
Esses efeitos são verificados, em primeiro lugar, numa excessiva concentração da propriedade intelectual em mão de nacionais de países desenvolvidos. Quatro países desenvolvidos têm mais de 90% das patentes. Mais ainda, as agências reguladoras de três países, os EUA, a EU (União Européia) e o Japão, têm cerca de 90% dos registros das novas patentes. Mais ainda, tem-se verificado que grande parte das patentes e dos processos industriais, na realidade, não são merecedores de privilégio e de proteção, por não serem inovadores. Mais ainda, muitas patentes são decorrentes de mera pirataria ou fraude contra terceiros: indivíduos, grupos sociais, nações e/ou Estados.
Tem-se ainda observado que, com freqüência maior, empresas têm adquirido patentes de terceiros para evitar a concorrência com produtos elaborados com suas próprias, o que é uma prática contrária à livre competição e que distorce os mercados. Muitas vezes, inovações em países em desenvolvimento são obstadas dessa maneira, o que implica na absorção de tecnologias inadequadas, total ou parcialmente, para além da prática anti-concorrencial.
É ainda de se notar que a maioria dessas patentes criadas nos países ricos é desenvolvida com monumentais subsídios governamentais, que distorcem totalmente a atividade de livre mercado. Alguns de tais processos e patentes são desenvolvidos através de programas militares, com orçamentos superiores às economias de praticamente todos os países em desenvolvimento. Grande parte dessas tecnologias tem uso dual, militar e civil.
Vários outros orçamentos contemplam hoje subsídios disfarçados na área de pesquisa química, agrícola, biológica, médica, tecnologia de informação, etc. Como gastos públicos, os resultados deveriam beneficiar os nacionais do Estado e à Humanidade. Nesse particular, é ainda de se observar que o regime multilateral do TRIPS não contempla exceções à propriedade intelectual na área de direitos humanos, o que representa certamente a sua maior, mas não única, falha.
Um dos grandes desafios dos nossos negociadores é o de alterar substancialmente esse regime inadequado de proteção à propriedade intelectual, de tal forma a fazê-lo menos sujeito às graves distorções apresentadas, bem como mais apropriado para a promoção dos interesses dos consumidores, contra os das grandes empresas; das regras de mercado, contra os monopólios; dos países em desenvolvimento, contra os desenvolvidos; da Humanidade, contra os do capital.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).