LONDRES – Quando me preparava para qualificar-me como advogado inglês, nenhuma dificuldade foi maior do que o entendimento da Constituição britânica. De muito pouco serviu meu conhecimento prévio em teoria do direito constitucional, já que a Lei Maior britânica antecede a essas contribuições. Tampouco minha formação jurídica luso-brasileira, nem meus estudos de pós-graduação em direito constitucional americano, foram de grande valia na compreensão de um sistema, ao mesmo tempo, anacrônico e surpreendentemente funcional. Já foi dito por Walter Bagehot, em meados do século 19, que o constitucionalismo inglês era inaplicável a qualquer outro país. Hoje, discute-se até quando o sistema será factível no próprio Reino Unido, tendo em vista o desenvolvimento do direito internacional formatado de maneira freqüentemente incompatível, e até mesmo antagônica, ao sistema britânico.
A Constituição britânica consiste em fontes difusas de direito. São essas os Atos do Parlamento, e o direito comum, como interpretado pelos tribunais de mais alta instância, ambos escritos mas não consolidados, da mesma forma que as “convenções” e as “práticas”, ambas não escritas. As convenções são costumes mantidos de forma consistente através dos tempos e que regulam normalmente as relações do Legislativo e do Judiciário com a Coroa. As convenções não são exeqüíveis nos tribunais, pois têm apenas força moral. Revoga-se uma convenção quando o seu inadimplemento respectivo não é criticado. As práticas são normalmente usos pertinentes à organização de forças políticas ou sociais, como por exemplo os partidos políticos, e não são mandatórias, nem mesmo moralmente. Assim, uma modificação constitucional pode ocorrer com a alteração na organização político partidária. Da mesma forma, uma ação administrativa de um partido político poderá colmar uma lacuna constitucional no Reino Unido.
Quando há um conflito entre as duas fontes principais de direito constitucional, os Atos do Parlamento e o direito comum, prevalecem os primeiros. Isso ocorre porque, no Reino Unido, não há a clássica divisão de poderes concebida por Montesquieu, entre o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, isonômica e controlada. Ao contrário, no Reino Unido, os poderes são o Legislativo, o Judiciário e a Coroa. Todavia, diferentemente da tradição constitucional mundial, no Reino Unido, o Legislativo prevalece sobre o Judiciário e sobre a Coroa. O fundamento jurídico de tal supremacia é convencional, ou seja, fundado numa convenção. A atividade legislativa do Parlamento britânico, assim, não está sujeita ao controle de constitucionalidade pelo Judiciário. Esse pode rever os atos de governo ou administrativos do gabinete parlamentar, o Executivo, mas não os atos legislativos do Parlamento.
Mais ainda, o gabinete britânico tem como um de seus membros o chefe do Judiciário. Essa pessoa, o lorde chanceler, por conseguinte, ocupa posições de poder no Legislativo, como membro do Parlamento; no Executivo, como membro do gabinete; e no Judiciário, como juiz e seu chefe administrativo. Nessa última capacidade, é ele, o lorde chanceler, quem nomeia e promove os membros da Magistratura. Em qualquer outra democracia, essa prática seria, sem dúvida, denunciada como tirânica, mas no Reino Unido, apesar de seus graves problemas inerentes e de muitas e merecidas críticas, não tem prejudicado de maneira substancial o Estado de Direito.
De fato, no Reino Unido, a tradição histórica e o profundo sentimento ético enraizado na sociedade em geral, bem como uma certa atualização, tem impedido a obsolescência funcional de sua Constituição. Naquele país, os governantes são escolhidos democraticamente, a igualdade de todos perante a lei é assegurada, da mesma forma que a supremacia do direito sobre o arbítrio. Nas eventuais omissões, como no caso dos direitos humanos, os tratados e convenções internacionais vêm a socorro e são incorporados ao direito constitucional britânico, pelo direito comum, após decisões judiciais em casos concretos.
A eventual aprovação de uma Constituição Européia representará uma enorme alteração no quadro do direito constitucional britânico, o que é um dos motivos para a expressiva resistência contra a iniciativa, por parte de largo segmento da opinião pública do Reino Unido.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).