O pacto comercial do Mercosul recebeu acerbas e injustas críticas por ocasião do mais recente contencioso comercial entre Argentina e Brasil, quando o governo de Buenos Aires anunciou medidas no sentido da aplicação de salvaguardas contra aparelhos de televisão produzidos na Zona Franca de Manaus e de licenças não automáticas para a importação de eletrodomésticos de linha branca. Comentou-se, à exaustão, que o Mercosul teria sido mais uma iniciativa política do que comercial e que, como organismo político, o bloco não teria maiores méritos. Como área de livre comércio, o Mercosul nada teria representado, nada representa e nada trará aos países da região.
Trata-se de análise tanto infundada quanto sofística. O bloco comercial foi em igual medida uma iniciativa política e comercial, com resultados altamente positivos em ambos os setores. O comércio intrazona passou de 8 bilhões de dólares, em 1990, ano que antecedeu a assinatura do Tratado de Assunção, em 1991, para uma média de 27 bilhões, durante a vigência do pacto. Essa majoração anual de 19 bilhões de dólares impulsionou as atividades econômicas dos países da região e permitiu notáveis ganhos de escala para a competição global. Esse resultado foi mais importante ainda ao permitir aos produtores regionais acesso a mercados internacionais, não facultado ou impossível no regime multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC).
Contudo, não se pode comparar um acordo aduaneiro regional entre países em desenvolvimento, de economia assimétrica, como o Mercosul, com aqueles pactos de comércio celebrados por países desenvolvidos, ainda que a base jurídica multilateral esteja assente no mesmo artigo XXIV do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (Gatt), de 1947. Isso ocorre porque os países em desenvolvimento ainda estão em processo de maturação de suas instituições políticas e econômicas e sofrem freqüentemente abalos raros ou incomuns aos países desenvolvidos.
Essa dinâmica traz como corolário choques que ocorrem não somente no confronto dos interesses domésticos de um dado país, mas também entre os interesses de um país com os de outro signatário do pacto comercial. Muitas vezes, o embate doméstico nos países signatários diz respeito a questões basilares, como a livre iniciativa, a isonomia econômica e a livre competição. Um exemplo notório dessa situação é a questão das chamadas zonas francas.
As zonas francas são áreas geográficas que recebem subsídios, incentivos fiscais e outros que as caracterizam como anomalias tanto no regime multilateral de comércio como no ordenamento jurídico doméstico. Ocorre que, no regime jurídico internacional de regência, o Acordo de Subsídios e o Acordo sobre Medidas Comerciais (Acordo Trims) punem os subsídios e incentivos normalmente outorgados pelos regimes das zonas francas. Assim, as zonas francas, antes de distorcerem o comércio internacional, afetam adversamente a economia doméstica.
Reconhecendo tal indisfarçável realidade, a Decisão 8 do Conselho Mercado Comum do Mercosul, de 5 de agosto de 1994, determinou que os produtos originários de zonas francas e áreas aduaneiras especiais, na região, fossem tratados como advindos de terceiros países, com a conseqüente aplicação da Tarifa Externa Comum (TEC). Como corolário lógico e necessário da referida constatação, o mesmo diploma legal admitiu a aplicação de medidas de salvaguarda, previstas no Acordo sobre Salvaguardas da OMC.
Conforme expliquei em meu livro A OMC e os Tratados da Rodada Uruguai, o Acordo sobre Salvaguardas permite a um Estado-membro do referido organismo multilateral a adoção de uma medida de salvaguarda, se for determinado que o produto afetado está sendo importado em quantidades majoradas, absolutas ou relativas à produção doméstica, e em condições tais que possam causar um dano sério à indústria doméstica.
Dessa maneira, tendo constatado um incremento extraordinário de importações de aparelhos de televisão originários da Zona Franca de Manaus, e tendo esse surto de importações afetado potencialmente a própria existência da indústria doméstica, nada seria mais natural para o governo da Argentina, por ser inclusive sua obrigação legal, do que abrir a investigação pública do fenômeno, para os fins e efeitos de direito, inclusive internacional. Não se pode razoavelmente esperar do governo da Argentina a mesma passividade dos pólos industriais domésticos que no Brasil foram erradicados artificialmente, em favor da Zona Franca de Manaus. De mais a mais, o Brasil já havia tratado unilateral e ilegalmente da questão, aumentando a vigência da Zona Franca de Manaus de 2013 para 2023, conforme a Emenda Constitucional 42, de 19 de dezembro de 2003.
A adoção de licenças não automáticas de importação de eletrodomésticos também é um direito do país importador, assegurado pelo Acordo sobre Procedimentos para Licenciamento de Importações, outro dos tratados da OMC. Face a um aumento de importações de cerca de 100%, é natural que o governo da Argentina deseje saber mais a respeito do fluxo respectivo, para que inclusive possa tomar eventuais medidas. O licenciamento não automático de importações, todavia, não poderá ser utilizado como uma barreira não tarifária, pois nesse caso haveria uma inconsistência jurídica face ao regime multilateral do comércio.
Assim, nada justifica o tratamento exacerbado e até escandaloso dado à questão, onde se procurou inclusive criar uma crise absolutamente artificial para uma disputa em tudo natural. O Mercosul continua a ser uma importante e válida iniciativa regional política e comercial.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).