Mais ainda, o editorialista assegura que “não tem sentido o falatório de industriais argentinos sobre a invasão de produtos brasileiros”, para atacar as recentes medidas do governo da Argentina no sentido de abrir investigações para a eventual adoção de salvaguardas na importação de produtos brasileiros provenientes da Zona Franca de Manaus. Essa questão foi objeto de minha última coluna, O Mercosul e a crise da Zona Franca.
Por outro lado, no editorial do dia seguinte, ao tratar da China, o editorialista acha “prudente usar nas negociações com a China o mecanismo das salvaguardas”. Isso porque a China nem sempre faz concorrência de acordo com as regras internacionais de comércio, particularmente nos segmentos julgados sensíveis para certos setores empresariais nacionais, como os segmentos de cerâmica, fios têxteis, derivados de borracha, máquinas e equipamentos, material para iluminação e fósforos.
Para justificar o argumento do primeiro editorial, os empresários argentinos são acusados de incompetentes e, na justificativa do segundo, os competentes empresários brasileiros, na mesma situação dos argentinos, seriam vítimas de um “comércio desleal”. Acresce que o editorialista do segundo artigo mencionado chega a recomendar o uso de salvaguardas em negociações, algo não contemplado em nenhuma tratado multilateral de comércio, muito menos no Acordo sobre Salvaguardas ou no Protocolo de Acessão da China à OMC. Como é sabido, as medidas de salvaguardas têm um procedimento administrativo próprio, são sujeitas ao devido processo legal e à revisão judicial, e sua aplicação em negociações é algo sem precedentes.
Tenho notado no tratamento das questões do comércio exterior brasileiro uma freqüente paixão incontida, uma trêfega xenofobia, que ofusca a realidade, impede o diagnóstico preciso do problema e, assim, inviabiliza a solução potencial para a situação. Um exemplo disso pode ser visto no segundo editorial supra mencionado, que acusou o governo da China de “exacerbação artificial” do problema da soja.
Ora, o “problema da soja” foi causado em grande parte pela rejeição, por muitos produtores, das sementes de soja natural no Estado do Rio Grande do Sul em favor daquelas transgênicas, contrabandeadas em grande parte da Argentina, para evitar o pagamento de royalties. Com a disponibilidade de sementes rejeitadas (de coloração vermelha para identificar tratamento com fungicidas e bactericidas que inviabilizam o uso animal e humano), muitos produtores inescrupulosos as adquiriram a preço vil para adicionar ao carregamento de grãos saudáveis. Alguns outros, simplesmente as adicionaram à mercadoria para ganho de peso.
Por sua vez, a autoridade fito-sanitária nos terminais portuários privatizados do Rio Grande do Sul deixou de emitir os respectivos certificados, exigidos pela legislação internacional de regência. É de se mencionar ainda que os contratos de exportação tinham cláusulas de pureza absoluta da carga, sem margem de tolerância. Os preços de compra dos grãos brasileiros foram travados por operações de hedge feitas nas bolsas mundiais de mercadorias, pelos chineses, como é da prática internacional.
A autoridade fito-sanitária chinesa constatou a contaminação de diversas cargas e a causa percebida do problema teria sido o tratamento “exacerbado” por ela dado à questão. O problema não estaria certamente no contrabando de sementes. Ele também não seria encontradiço no uso doloso de matérias contaminadas para fraudes quanto ao peso. Certamente, ele não poderia ser identificado na surpreendente omissão da autoridade fito-sanitária brasileira na emissão dos correspondentes certificados. Igualmente, o problema não estaria na falta de uma ética empresarial compatível com os padrões do comércio internacional. Errado está o cliente ao recusar mercadorias contaminadas.
Esta sistemática vilificação dos empresários estrangeiros, no caso os argentinos e chineses, obscurece falhas importantes no Brasil como regimes múltiplos de subsídios ilegais, fraudes fiscais, falhas fito-sanitárias, corrupção, incompetência empresarial e baixa competitividade institucional. Ao se obscurecer tais falhas, impede-se o aprimoramento das condições para um melhor perfil de comércio exterior. Ao se apoiar o descalabro, contribui-se para um maior descrédito internacional do Brasil. Ao se usar da sofística da duplicidade e da hipocrisia em questões de comércio internacional para a defesa de más práticas comerciais e de maus empresários, presta-se um grande desserviço à economia brasileira.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).