Quando, por iniciativa do meu querido Amigo, Prof. José Manoel de Aguiar Barros, recebi o honroso convite de retornar à querida Terra Natal, para fazer esta apresentação na Casa do Advogado, a proposta foi que eu falasse sobre a advocacia no terceiro milênio. Preferi, ao invés, retornar ao tema da globalização do direito, que já abordei nesta Casa há cerca de 10 anos atrás, por entendê-lo, mais do que nunca, grave e oportuno. Naquela ocasião, por volta de 1991 e 1992, pediram-me o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e a seccional paulista da OAB que proferisse conferências a advogados, pelo Brasil, a fim de alertar os profissionais do direito para o fato que a liberalização da advocacia, isto é a abertura dos mercados para os serviços legais estrangeiros, havia sido incluída nas negociações da Rodada Uruguai do Acordo Geral de Tarifas e Comércio, o GATT, por iniciativa dos países desenvolvidos, notadamente os Estados Unidos da América (EUA); a União Européia [1]
(UE); e o Japão. Constataram tais países que suas economias consistiam, em mais de 60%, do setor terciário e, por conseguinte, desejaram a abertura dos mercados internacionais, de tal forma que pudessem vender serviços financeiros, securitários, de telecomunicações, de construção; de transportes, bem como serviços profissionais nas áreas de direito, medicina, contabilidade e auditoria, engenharia, arquitetura, etc.

Tratava-se, como demonstrei em diversos de meus livros[2], de uma iniciativa rapace para manter a hegemonia comercial dos países desenvolvidos em detrimento dos países em desenvolvimento e, portanto, uma grave ameaça estratégica ao futuro do Brasil. O tema não despertou maior interesse na ocasião perante a opinião pública nacional. Tinha o Brasil maiores preocupações de ordem interna, com a afirmação da democracia, depois dos longos e tenebrosos anos da ditadura militar. Desta forma, nosso país, como quase a totalidade dos países em desenvolvimento, empreendeu pouca resistência aos desígnios hegemônicos e, ao contrário, procedeu a uma abertura unilateral sem precedentes de sua economia, sem exigir contrapartidas de seus principais parceiros comerciais. Isto, todavia, não ocorreu com os serviços legais pois, como o negociador brasileiro para a questão, durante a Rodada Uruguai, pude desmascarar a tentativa de dominação dos mercados dos países em desenvolvimento, enquanto fechavam-se os países desenvolvidos mediante o uso de barreiras horizontais à imigração. [3]

Com a conclusão da Rodada Uruguai do GATT em 1994 e subsequente fundação da Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1995, alertei, na qualidade de presidente da Comissão do GATT da OAB-SP, a advocacia brasileira para os riscos da invasão ilegal do território nacional, por parte de advogados e aventureiros estrangeiros, no sentido de criar uma situação de fato de presença comercial no Brasil, já que havia falhado a tentativa de regulação no âmbito da OMC, à guisa do que haviam feito em outros países, como no leste europeu, na China e no Japão. Impunha-se uma regulamentação da questão no ordenamento jurídico interno, que era omisso. Foi criada, pela seccional paulista, uma comissão para preparar um regulamento a respeito da situação do consultor em direito estrangeiro. A iniciativa sofreu a oposição inicial de certo setor obscurantista da advocacia empresarial paulista, mas finalmente resultou neste ano em um provimento do Conselho Federal da OAB. Pergunta-se, então, se estão cabalmente afastados os graves riscos à independência da advocacia brasileira e, por conseguinte, à ordem pública nacional e ao futuro dos advogados do país.

Infelizmente, impõe-se uma resposta negativa. A questão da regulamentação da atividade em território brasileiro do consultor jurídico estrangeiro, era e é importante, para a defesa da ordem pública, das instituições democráticas e do consumidor nacional. Situa-se ela no campo da defesa dos privilégios da advocacia e dos direitos da sociedade civil, já ilegalmente corroídos pela atuação dos corretores, na área do direito imobiliário; dos bancos, na área dos contratos financeiros e negócios empresariais; dos contadores e auditores, na área do direito fiscal; das corretoras de valores, no planejamento fiscal e governança corporativa; dos chamados consultores, na área de recuperação fiscal, de conflitos societários e de comércio exterior; dos chamados agentes, na área da propriedade intelectual. Dentro deste quadro, também preocupa a proliferação de centros de arbitragem e de seus árbitros, sem o mínimo controle e, principalmente, sem o compromisso com a ordem pública, essencial componente do judiciário.

O perigo maior que se apresenta à advocacia brasileira é o mesmo que se apresenta aos países em desenvolvimento de um modo geral, ou seja, é a ameaça à soberania decorrente do chamado processo de globalização, cujo veículo jurídico de direito internacional é a OMC, por sua vez regulada pelos chamados Tratados de Marraqueche ou Tratados da Rodada Uruguai. A globalização, “latu sensu”, é o processo de continuada expoliação dos países em desenvolvimento por um núcleo central de países desenvolvidos, mediante a imposição de valores e padrões culturais etnocêntricos, bem como de normas unilaterais e não eqüitativas, sob o manto de uma falaz juridicidade internacional, administrada sob a especiosa ideologia do chamado livre comércio por uma organização internacional sem compromissos com a prevalência do estado de direito e da justiça nas relações internacionais. Como bem lembrou Ernesto Sabato[4]
: “Quando la cantidad de culturas relativiza los valores, y la ?globalizatión?aplasta con su poder y les impone una uniformidad arrogante, el ser humano, en su disconcierto, pierde el sentido de los valores y de sí mismo y ya no sabe en quién o en qué creer” [5]
.

Este processo que, sabidamente, não é novo intensificou-se com o colapso da União Soviética e com o conseqüente fim da bi-polaridade geopolítica mundial. Seus principais instrumentos são organismos internacionais criados no pós-guerra, repristinados para uma atuação mais eficaz na exploração da miséria humana. Em todos eles, é consagrado no direito internacional o poder de veto de um só país, os EUA. Na OMC, ele funciona de fato e como uma decorrência do mecanismo de decisão consensual. Na Rodada Uruguai do GATT, institutos de direito privado foram incorporados à ordem jurídica multilateral e, por conseguinte, passaram a ser a lei interna dos membros da OMC, hoje em número de 137 países, devido ao fato de que o direito internacional situa-se acima da lei doméstica na hierarquia constitucional das normas jurídicas, para todos eles, à exceção dos EUA, que do regime se beneficia, mas a ele não se submete[6]
.

Desta forma, áreas como direito tributário; direito previdenciário; política monetária; e política fiscal, passaram a ser objeto de formulação pelo Fundo Monetário Internacional. Por sua vez, a OMC formata a legislação de regência dos setores de propriedade intelectual; comércio exterior; investimentos; política aduaneira; agricultura; indústria e serviços, inclusive profissionais. Estas normas, que hoje fazem parte de nosso ordenamento jurídico interno, foram negociadas com uma pífia participação dos negociadores brasileiros que, na fase final do processo, estavam desequipados materialmente, desmoralizados, sem liderança política e sem referencial dos agentes econômicos e sem prestação de contas à sociedade civil. A descrição de tal situação evocou-me a lembrança das palavras de Benedetto Croce[7]
: “Siamo tra le onde e non abbiamo ammainato le vele nel porto per prepararci a nuovo viaggio” [8]
. Assim, o dano aos interesses do Brasil foi enorme, pois o universo representado por tais normas tem uma abrangência econômica expressiva e representam quase a totalidade da economia mundial.

Qualquer violação a tais dispositivos, real ou presumida, dará ensejo a uma disputa submetida ao Sistema de Resolução de Controvérsias da OMC, administrado de maneira etnocêntrica, sem transparência e sem governança, em Genebra, com um histórico de mais de 90% de derrotas dos países em desenvolvimento no confronto de questões com os países desenvolvidos. Somente os EUA prevaleceram em mais de 90% dos casos nestes confrontos e a UE não ficou muito atrás. O Brasil foi o campeão das derrotas nos autos da fé da OMC, tendo sucumbido em 4 casos nas disputas e num outro preliminarmente, nas consultas. A maior derrota jamais sofrida por um país no âmbito da OMC foi a do Brasil no caso dos subsídios à indústria aeronáutica contra o Canadá. Nesta questão, o Brasil foi condenado a compensar o Canadá por perdas de aproximadamente US$ 1,7 bilhão e seu programa de financiamento às exportações, o PROEX, foi considerado ilegal, situação única dentre as 10 maiores economias mundiais, e o principal precedente adverso foi criado pelo próprio embaixador brasileiro[9]
! Em todos os casos, o Brasil foi representado pelo mesmo escritório de advocacia americano! Se tivesse atuado nos casos, em favor dos interesses nacionais, a advocacia brasileira certamente não poderia ter feito pior. Esta decisão foi tão absurda quanto tercerizar os serviços prestados pelo Itamaraty a uma empresa estrangeira, de país hegemônico.

Tal qual nas negociações objeto da Rodada Uruguai, mas por razões distintas, andou mal a diplomacia brasileira nestas questões de disputas, nos últimos anos, o que nos leva a ponderar se não seria melhor transferir do Ministério das Relações Exteriores, para outro organismo governamental, as negociações comerciais, à semelhança do que fazem EUA, UE e Japão. Freqüentemente mais preocupados com as próprias sinecuras; confundidos pelas pequenas disputas internecinas; promovidos por interesses políticos e não por mérito; distanciados do país e de seus interesses; mal preparados para os duros embates das negociações comerciais; emaciados pela soberba, pela arrogância e pela sobranceria, os diplomatas brasileiros mostraram-se, nestes 5 anos de vigência da OMC, incompetentes para a defesa dos interesses nacionais. Mais ainda, por vezes foram econômicos com a verdade, procurando ocultar da opinião pública a extensão dos resultados adversos e de suas conseqüências. Nos EUA e na UE vige, nas questões comerciais, uma política de resultados. Quando um negociador americano presta contas ao seu congresso, discorre a respeito dos interesses nacionais e como foram preservados. Quando fala um negociador brasileiro do passado mais recente, ele discorre, às vezes de memória, sobre o doce comércio de Montesquieu[10]
. Ora, se o comércio internacional tivesse sabor, este seria acerbo e amaro, com um fundo acrimonioso. A gravidade do embate não deixa espaço para devaneios nefelibatas.

Insatisfeitos com a hegemonia alcançada na última ronda de negociações, que fez com que a prosperidade mundial nos cinco anos de vigência da OMC ficasse circunscrita a uns poucos países desenvolvidos, notadamente os EUA e a UE, desejam estes aperfeiçoar o sistema, de tal maneira a torná-lo mais eficaz na disseminação da miséria a muitos, em benefício da prosperidade de um poucos. Esta posição ficou nítida nas agendas para a malfadada Rodada do Milênio, que ora pretende-se resgatar das cinzas da procelosa reunião ministerial de Seattle. Nestas agendas, há alguns tópicos que interessam muito de perto à advocacia brasileira. O primeiro deles diz respeito à questão das chamadas cláusulas sociais; o segundo diz respeito ao comércio eletrônico. Com uma cínica argüição da promoção da prosperidade geral dos povos e dos melhores padrões trabalhistas, pretende-se, na matéria das cláusulas sociais, erigir uma barreira protecionista consistente em tarifas compensatórias entre a remuneração do trabalhador do país desenvolvido, com aquele do país em desenvolvimento, que inexoravelmente seria condenado ao desemprego e à miséria absoluta se vingar tão cruel mecanismo.

Na questão do comércio eletrônico, pretendem os países desenvolvidos permitir sua total liberalização como modo de prestação de serviços, o que propiciaria a oportunidade legal de acesso ao mercado, sem regulamentação doméstica, da maior parte de produtos terciários como serviços bancários, financeiros e de seguros, bem como serviços profissionais como médicos, jurídicos, arquitetônicos, de engenharia, etc. Tudo isto sem contar aqueles produtos, como os programas de computador, que podem ser descarregados eletronicamente. E é exatamente aqui, no modo eletrônico de prestação de serviços, que vai ser decidido o futuro da advocacia, por ser o instrumento de menor custo e maior eficácia e, sob o ponto de vista hegemônico, por permitir a derrogação de toda a legislação doméstica de proteção à ordem pública, mediante um acordo internacional, e assim o pleno acesso e irrestrito acesso dos advogados estrangeiros aos mercados dos países em desenvolvimento, inclusive o do Brasil. O advogado local tem um inabalável compromisso com a ordem pública interna; sabe que representa o acesso à prestação jurisdicional do estado; e loca o melhor de seus serviços, indistintamente, a todos os segmentos da sociedade civil, dentro da lei e sem jamais comprometer sua consciência humana e profissional. Nós, os advogados, inspiramo-nos nas palavras daquele colega que personificou a dignidade humana, Gandhi[11]: “There is a higher court than the courts of justice and that is the court of conscience” [12]
. Por outro lado, o quê se pode esperar de um anônimo prestador de serviços legais representado por um sítio de computador? Qual é a consciência eletrônica? Ela existe?

Atingido tal objetivo, os países desenvolvidos, em geral, e os EUA, em particular, teriam atingido i) o controle o processo legislativo internacional e doméstico, naquilo de relevância para a ordem econômica, através da OMC; ii) o controle do processo judiciário internacional no sistema de resolução de disputas da OMC; iii) o controle da ação executiva doméstica em matéria de políticas fiscais e econômicas, mediante o uso combinado dos mecanismos da OMC e do FMI; e iv) o controle das sociedades civis do mundo afora mediante a erradicação da advocacia local, face à sua inviabilização em grande escala pela concorrência via modo eletrônico, com uma economia de escala sem precedentes na história da humanidade. Neste ponto, nunca é demasiado lembrar que estão também em andamento negociações para a criação de uma Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), mais uma iniciativa hegemônica dos EUA, no caso regional, mas com os mesmos objetivos estabelecidos para o comércio multilateral. Da parte do Brasil, tais negociações tem caracterizado-se por uma total falta de prestação de contas à sociedade civil.

Assim, na próxima ronda de negociações do sistema multilateral de comércio, estará em jogo não somente o que resta da soberania do países em desenvolvimento, de seus importantes valores e padrões culturais, mas bem assim a liberdade dos povos, e, consequentemente, a sobrevivência da advocacia, esta formidável instituição milenar que, por princípio, representa a última defesa contra o arbítrio e a opressão, bem como a força de afirmação do direito e da justiça. Por tudo aquilo que está em jogo, nós os advogados brasileiros temos o dever de i) contribuir ativamente para a definição dos interesses nacionais nas questões de direito internacional; ii) acompanhar tais negociações exigindo transparência e competência na afirmação dos interesses nacionais por parte dos representantes brasileiros; iii) tomar as medidas judiciais cabíveis para apuração de responsabilidades no caso de acordos detrimentais aos interesses nacionais e à Constituição Federal; e iv) tomar as medidas judiciais cabíveis para negar vigência no terrritório nacional de acordos internacionais ilegais. Aqui pediria licença mais uma vez para lembrar a sabedoria de nosso colega Mahatma Gandhi[13]
no sentido de que: “Democracy is the art of mobilising the…people in the service of the common good” [14]
.

Para podermos agir com eficácia nesta área, faz-se necessária uma crescente capacitação profissional da advocacia. Meu alerta sobre as tentativas espúrias de utilização do comércio eletrônico para fins hegemônicos nos foros multilaterais não é um menoscabo das tecnologias de informação, de importância estratégica para o desenvolvimento das profissões legais e aprimoramento do estado de direito. A faculdade de direito brasileira que se omite na área de informática jurídica deixa de prestar um enorme serviço ao país. Hoje, temos que reconhecer que nossas faculdades de direito apresentam-se em situação de nítida inferioridade com relação às congêneres estrangeiras. Esta situação é agravada por uma educação básica falha. Nossas escolas públicas apresentam um défice de qualidade. No passado, elas formavam a elite. Mesmo aqui, no Instituto de Educação Monsenhor Gonçalves, foram educados alguns dos homens e mulheres mais destacados do país, como o Ministro Aluísio Nunes Ferreira Filho; o Prof. Elisaldo Carlini, da Escola Paulista de Medicina; e a Dra. Dulce Pereira, secretária geral da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Isto não mais existe, desgraçadamente. A ser mantido tal quadro, numa situação de livre competição internacional no setor de serviços legais, sairemos inexoravelmente perdedores.

Minhas Senhoras e meus Senhores, caros Amigos, agradeço as atenções a mim dirigidas e a oportunidade de estar hoje na Casa do Advogado de São José do Rio Preto, que me possibilitou reencontrar os principais valores que caracterizam nossa cultura: o calor humano, a simpatia e a solidariedade.