1.1. O Acordo Geral de Tarifas e Comércio – Gatt, assinado originalmente em 1947 por 23 países, entre os quais o Brasil, estabeleceu entre os seus princípios básicos, no artigo 1, o da Cláusula da Nação Mais Favorecida – MFN, que nada mais é do que a automaticidade da generalização, a todos parceiros comerciais, de uma concessão feita a um deles. A cláusula MFN é incompatível com o conceito da reciprocidade nas relações comerciais internacionais, mas ao menos teve o mérito de estabelecer o patamar mínimo sobre o qual se podem assentar os alicerces da construção do grande edifício da juridicidade no comércio mundial. Durante a Rodada Uruguai do Gatt, encerrada em 1994, e que resultou na criação da Organização Mundial do Comércio – OMC em 1995, uma das maiores reivindicações dos países em desenvolvimento, entre os quais o Brasil, foi o aperfeiçoamento da estrutura jurídica das relações comerciais internacionais, de tal forma a se limitar o arbítrio e o exercício das próprias razões.
1.2. O Gatt, em seu artigo 24, permite exceções ao princípio da cláusula MFN no tocante a zonas de livre comércio e mercados comuns, desde que tais exceções representem não um obstáculo à liberalização comercial, mas uma fase intermediária neste propósito. Para os Estados em geral, todavia, a cláusula MFN e o sistema multilateral representam uma âncora e uma garantia de tratamento dentro do ordenamento jurídico internacional. Iniciativas regionais, se não fundadas na ordem jurídica eqüitativa, podem subverter as relações e resultar na subordinação de um Estado a outro. Destes conceitos básicos decorrem a importância fundamental do Direito do comércio internacional nos dias de hoje para o diagnóstico de situações presentes concretas; para informar decisões específicas; bem como para orientar na busca da eqüidade nas relações comerciais entre estados soberanos.
1.3. De todos os parceiros comerciais, os EUA têm sido, desde a fundação do Gatt, o qual inspiraram nas virtudes e nos defeitos, não somente o país mais litigioso em questões comerciais, mas aquele que sistematicamente mais tem violado o Direito do comércio internacional, das mais diversas formas, inclusive pela postura unilateral no tocante às desavenças comerciais e pela inconsistência de parte importante de seu ordenamento jurídico interno face ao Direito Internacional.
1.4. O estudo do Direito Comparado é sempre muito importante nas questões de comércio internacional, por proporcionar a base para um diagnóstico de questões atinentes às práticas desleais de comércio, acesso a mercados e, de um modo geral, da conformidade com o ordenamento jurídico multilateral e com o Direito Internacional. No momento, todavia, diante da iniciativa para a formação da Área de Livre Comércio das Américas – Alca, seu exame se reveste de significado estratégico para que se possa avaliar o alicerce jurídico sobre o qual os EUA assentariam sua participação na projetada zona de livre comércio.
1.5. Isto posto, dividi a apresentação de hoje nos seguintes tópicos:
1.5.1. esta introdução;
1.5.2. tipos de tratados internacionais no direito interno dos EUA;
1.5.3. a formação e a implementação dos tratados no direito dos EUA;
1.5.4. a Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados face ao direito dos EUA;
1.5.5. a legislação comercial dos EUA e a seção 301 do Ato Sobre Tarifas e Comércio;
1.5.6. a legislação anti-dumping dos EUA; e
1.5.7. conclusão: os riscos legais dos acordos comerciais com os EUA.
2.1. No direito interno dos EUA, há que se fazer uma distinção entre tratados e acordos executivos, ao passo que, no âmbito do Direito Internacional, ambas as modalidades são consideradas tratados. O Direito Constitucional dos EUA classifica os acordos internacionais como: tratados; acordos executivos congressuais; e acordos executivos presidenciais.
2.1.1. Tratados: devem ser obtidos através do aconselhamento e consentimento do Senado.
2.1.2. Acordos Executivos Congressuais: são divididos em duas categorias, previamente ou subseqüentemente autorizados.
2.1.3. Acordos Executivos Presidenciais: são os celebrados pelo poder executivo com base em uma autorização constitucional específica, como pela cláusula de comandante-em-chefe das forças armadas.
2.2. A Constituição dos EUA determina que o presidente do país possui o “poder para, através do aconselhamento e consentimento do Senado, assinar tratados, desde que dois terços dos senadores presentes concordem.” [1]
O poder para celebrar tratados é, portanto, dividido entre o Executivo e o Legislativo do governo dos EUA. A função do Senado é aconselhar e consentir sobre a assinatura de um tratado; as funções do presidente são celebrar, ratificar ou concordar com a assinatura de um tratado. O Senado pode incluir uma ou mais condições para o seu consentimento, requerendo que o tratado seja emendado pelo presidente ou que o mesmo imponha certas reservas. O presidente somente poderá ratificar ou aceder ao tratado com as alterações propostas pelo Senado.[2]
2.3. Esta sistemática bipolarizada do poder de celebrar tratados teve o condão de tirar a credibilidade dos negociadores internacionais dos EUA, diante da constatação de que o respectivo tratado resultante poderia muito bem ser retalhado pelo Senado daquele país. Evidentemente, os tratados comerciais, por sua vasta complexidade e por cobrirem ampla gama de interesses, são os mais vulneráveis a generalizadas modificações.
2.3.1. Tendo em conta tal realidade, o Ato sobre Acordos Comerciais de 1974 [3]
estabeleceu um mecanismo que permitiria, ao mesmo tempo, dar credibilidade para os negociadores americanos encarregados das tratativas internacionais visando um acordo comercial e manter a plena autoridade constitucional do Senado dos EUA. Tal mecanismo dispõe que o resultado dessa negociação deveria ser adotado ou recusado em bloco [4]
pelo Senado dos EUA, dentro de um determinado período, geralmente de 90 dias, desde que os negociadores tivessem se pautado dentro de diretrizes préviamente autorizadas pelo Senado. A este processo, convencionou-se chamar de “via rápida”.[5]
2.4. No tocante à hierarquia das normas, nos EUA as leis federais e os tratados são tecnicamente considerados como se estivessem no mesmo patamar. Por conseguinte, na ocorrência de um conflito entre uma lei federal e um tratado internacional, os tribunais interpretarão aquele que tiver sido constituído em último lugar como sendo a lei aplicável para a solução de uma situação litigiosa específica. Por outro lado, os tratados, na hierarquia das normas, situam-se acima das leis estaduais.[6]
3.1. A Constituição dos EUA [7]
determina que todos os tratados celebrados pelo país passam a ser a lei local e reza que os casos derivados de sua aplicação são de competência do poder judiciário municipal, ou seja, doméstico.[8]
O primeiro dos dispositivos supramencionados foi inserto pelos constituintes motivado pelo receio que se tinha do cumprimento das obrigações internacionais dos EUA pelos estados federados, em função das especificidades momentâneas na época da independência.
3.2. Todavia, a prática constitucional americana evoluiu no sentido de que, apesar de a Constituição ordenar que os tratados devam ser interpretados como leis, nem sempre os acordos internacionais podem ser invocados por qualquer pessoa, a qualquer tempo. Esta situação se apresentou como resultado da evolução jurisprudencial que distinguiu o acordo auto-executável do acordo não auto-executável, no caso Foster v. Neilson, decidido em 1829 [9]
. Mais ainda, em Foster, a Suprema Corte decidiu que há uma presunção no sentido de que os tratados não são auto-executáveis, desde que careçam de autorização legislativa e que, por conseguinte, podem ser alterados.
3.2.1. Posteriormente, a jurisprudência dos EUA aprofundou os requisitos para que um tratado internacional venha a ser considerado como auto-executável. Desta forma, o fecho tradicional “todos os países partes desta convenção comprometem-se a aprovar, de acordo com sua Constituição, as medidas necessárias para assegurar a aplicação da presente convenção” foi interpretado pelo Judiciário americano como evidenciando o caráter não auto-executável do tratado em questão.[10]
3.3. Esta particularidade é agravada pela prática legislativa de aprovação dos tratados internacionais pelo Senado dos EUA, segundo a qual a validade do acordo internacional é subordinada à inexistência de conflitos com a legislação federal interna, um feito extraordinariamente raro em questões comerciais. Um exemplo desta situação é a legislação interna dos EUA no que diz respeito à implementação dos acordos da Rodada Uruguai, que estabelece, na seção 102 (a), que “nenhum dispositivo de qualquer dos tratados da Rodada Uruguai, nem a aplicação de qualquer dispositivo com relação a qualquer pessoa ou circunstância, que seja incompatível com algum preceito legal dos EUA, deverá ter eficácia.”[11]
3.3.1. Da mesma forma, com relação ao Tratado de Livre Comércio da América do Norte – Nafta [12]
, a lei dos EUA que aprovou sua vigência naquele país, na seção 102 (a) 1, determina que “nenhum dispositivo do acordo, nem a aplicação de qualquer dispositivo a uma pessoa ou circunstância, que seja incompatível com qualquer lei dos EUA, deverá ter eficácia.”[13]
3.4. Tais especificidades advêm da relutância profundamente enraizada nos EUA, tanto no Legislativo, como também no Judiciário, de fazer prevalecer a lei interna sobre o Direito Internacional. A conseqüência direta de tais circunstâncias é que, em toda probabilidade, um Estado que assine um tratado comercial com os EUA assumirá o ônus de compromissos com os EUA que os EUA não necessariamente terão como seus, do que resulta uma situação bizarra, incompatível com o Direito Internacional.
3.4.1. Desta situação advém potencialmente conseqüências adversas graves para o setor empresarial dos países parceiros comerciais dos EUA, nos tratados regionais de integração comercial, de vez que há hoje uma forte tendência de se permitir o Direito Privado de ação nestes casos. Isto é hoje permitido no âmbito da UE, bem como no do Nafta e também do Mercado Comum do Sul – Mercosul. Em tese, é possível que uma parte privada dos EUA exerça um direito conferido pelo Nafta, por exemplo, contra uma parte mexicana, sem que a parte mexicana possa exercer o mesmo direito contra uma parte dos EUA.[14]
4.1. Muitos dos problemas discutidos no parágrafo anterior e derivados das especificidades apontadas na lei dos EUA não persistiriam se a Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados, concluída em 23 de maio de 1969 e em vigor deste 27 de janeiro de 1980 (CVLT), tivesse sido ratificada por aquele país [15]. De fato, a CVLT tenta codificar o Direito Internacional respeitantemente à lei dos tratados, bem como promover um certo desenvolvimento progressivo na área.
4.2. No Direito Internacional distingue-se as figuras de Estado parte da de Estado signatário de um tratado. De acordo com o artigo 11 da CVLT, apenas os Estados parte devem ser obrigados por um tratado internacional, o que se dá mediante a troca de instrumentos, ratificação, adesão ou qualquer outro meio convencionado no corpo do tratado. Assim, os dispositivos da CVLT são obrigatórios apenas às partes do tratado e aplicam-se somente aos acordos celebrados após a vigência da CVLT. Vários dispositivos da CVLT já faziam parte do Direito Internacional costumeiro, tendo sido apenas codificados pelo tratado.
4.3. Assim, as grandes inovações introduzidas pela CVLT dizem respeito ao que foi inserto para um desenvolvimento progressivo, no que chama a atenção ao disposto sobre as reservas nos tratados internacionais (arts. 19 a 23). Desta forma, o artigo 19 permite a formulação de reserva, a menos que:
a) a reserva seja proibida pelo tratado; ou
b) o tratado permita que apenas reservas específicas possam ser feitas, que excluem uma reserva pretendida.
4.3.1. Além disso, o artigo 17 da CVLT estabelece que o consentimento de um Estado de ter um tratado obrigatório apenas para si será válido somente na eventualidade da existência de dispositivo expresso a respeito no texto do respectivo tratado e se as outras partes contratantes assentirem.
4.4. O artigo 26 da CVLT estabelece a regra pacta sunt servanda com referência à lei dos tratados e o princípio da boa fé nos acordos internacionais. O artigo 27 determina que um Estado soberano não pode invocar sua lei interna como uma justificativa legal internacional para deixar de cumprir suas obrigações decorrentes de um tratado; e este dispositivo deve ser interpretado em conjunto com o artigo 46, que não permite que um Estado justifique o inadimplemento de uma obrigação internacional com base em alegação fundada em vício de consentimento, a menos que tenha sido violada uma norma interna de fundamental importância.
4.5. Os EUA, não obstante signatários do tratado, não ratificaram a CVLT. Em 1971, o presidente dos EUA enviou o texto respectivo ao Senado para ratificação, que pretendeu modificá-lo (sic) para sustentar a legislação americana em vigor que conflita, inter-alia, com os artigos 12 (consentimento em estar obrigado a um tratado pela assinatura); 13 e 14 (consentimento); 19 (formulação de reservas); 24 (vigência); 26 ( pacta sunt servanda); 27 (lei interna e observância dos tratados); 31 (regra geral de interpretação); 32 (meios suplementares de interpretação); 42 (validade); e 46 (uso de lei interna como justificativa para descumprimento de tratado).
5.1. A seção 301 do Ato sobre Comércio e Tarifas de 1974 [16]
autoriza o escritório do representante comercial dos EUA [17] (USTR) a investigar e sancionar práticas comerciais consideradas “desleais” aos interesses norte-americanos. Estas sanções, tanto de caráter tarifário como não tarifário, são estabelecidas de forma a impactar adversamente as importações dos países que de forma “injustificável” ou “não-razoável” restringirem as exportações dos EUA Em 1988, a lei foi emendada para criar três novas categorias: a Super 301; a Special 301; e a 301 de Telecomunicações. A Super 301 requer que o USTR prepare uma lista negra de países de práticas “não-razoáveis”; um cronograma para sua eliminação e um programa de sanções a serem aplicadas. A Special 301 é bastante semelhante e aplica-se à área de propriedade intelectual; e a 301 de telecomunicações visa abrir mercados “fechados” nessa área.
5.2. Entre as sanções disponíveis na seção 301 está a possibilidade de suspensão, retirada ou não aplicabilidade de benefícios conferidos por acordos multilaterais ou regionais, como o Nafta, OMC ou Alca, se este um dia vier a ser assinado. Tudo isso mutilateralmente, é claro.
5.3. Durante a Rodada Uruguai do Gatt, medidas tomadas sob o amparo da seção 301 pelos EUA eram freqüentemente justificadas com o argumento de que o sistema multilateral não tinha um mecanismo eficaz de resolução de disputas. Este argumento foi utilizado para fins de propaganda, mesmo sendo os EUA o país líder em não aceitação de laudos arbitrais adversos no Gatt [18]
. Esta posição também motivou iniciativas norte-americanas de melhoria da solução de controvérsias no âmbito do Gatt, que foram endossadas pela comunidade internacional, na esperança de que a maior juridicidade do sistema viesse a estabelecer a primazia do Direito no comércio internacional.[19]
5.4. Mesmo com o novo sistema de resolução de disputas bastante aperfeiçoado com a criação da OMC, os EUA não abandonaram suas práticas unilaterais, ilegais frente ao Direito Internacional de forma que, tecnicamente, estão em violação fundamental aos tratados da Rodada Uruguai. De acordo com um estudo preparado pela U.S. National Association of Manufacturers [20]
, somente no período de quatro anos, entre 1993 e 1996, mais de 61 leis e atos administrativos diferentes autorizando sanções unilaterais foram promulgadas nos EUA, tendo como alvo 35 países, entre eles a Argentina, o Brasil, o Canadá e o México, justamente as maiores economias da proposta Alca.
5.5. Há outros instrumentos no arsenal unilateral dos EUA que permitem a imposição de sanções econômicas incompatíveis com o Direito Internacional, entre os quais a lei de poderes internacionais de emergência econômica de 1977 [21]
; a lei de comerciar com o inimigo de 1917 [22]; a lei de assistência ao exterior de 1961 [23]; a lei de controle de exportação de armas de 1968; a lei de energia atômica de 1954 [24]; e a lei de adesão à Organização das Nações Unidas de 1945. Tudo isto sem mencionar as leis chamadas Helms-Burton e D´Amato.
5.6. De qualquer forma, há quase que um consenso geral entre os juristas no sentido de que as ações unilaterais embasadas na seção 301 violam, em ao menos três aspectos diferentes, o Gatt. Em primeiro lugar, qualquer retaliação baseada na imposição de tarifas ad valorem aplicada seletivamente irá violar o princípio da cláusula MFN (artigo 1). Por serem tais tarifas estabelecidas acima do teto consolidado na Rodada Uruguai, haveria também a violação do artigo 2 do Gatt. Por derradeiro, o fato de os EUA arrogarem-se o direito de serem, ao mesmo tempo e no mesmo caso, juiz e parte de um tribunal não sancionado pelo Direito Internacional representa igualmente uma aberração face à ordem jurídica multilateral.
6.1. Dumping pode ser definido em linhas gerais como sendo a venda, no mercado externo, a preços inferiores àqueles praticados no mercado doméstico. A prática do dumping é vedada pelo artigo 6 do Gatt de 1947. Se tal prática causa um dano à indústria doméstica, então um Direito Compensatório anti-dumping sancionado pelo Direito Internacional pode ser imposto pela autoridade competente do país que teve a indústria local prejudicada.
6.2. Este assunto tem sido controverso desde a Rodada Tóquio (1979) e o foi também durante a Rodada Uruguai (1986 a 1994). Se, por um lado, a prática do dumping tinha que ser coibida, de outro tornava-se difícil a obtenção de um consenso a respeito e, na falta deste, o instrumental anti-dumping poderia se tornar, como se tornou, um mecanismo de protecionismo exacerbado. Desgraçadamente, foi nesta última categoria que o mecanismo floresceu em diversos países em geral, mas na UE e nos EUA em particular. Durante a década de 80 houve, no mundo, cerca de 1.500 casos anti-dumping; sendo que entre 1990 e 1991 este número duplicou.[25]
6.3. A legislação anti-dumping dos EUA, originária do Ato de Tarifas de 1930, foi posteriormente alterada em 1979, em 1984, em 1988 e, mais recentemente, em 1994, pela legislação de implementação dos tratados da Rodada Uruguai. [26]
Essa legislação encontra-se presentemente codificada no código de leis federais dos EUA [27] e tem uma reputação fortemente protecionista, de tal forma que o economista chefe do Banco Mundial declarou que dumping é qualquer coisa que se consiga convencer o governo americano a combater e perseguir nos termos da lei local.[28]
6.4. De acordo com o artigo 19 do US Code, seção 1673, uma vez ocorrido o dumping e um dano material ao mercado doméstico, um direito anti-dumping será imposto, para além das tarifas normais, correspondendo à diferença entre o valor doméstico e o valor posto nos EUA. O procedimento anti-dumping, nos EUA, fica a cargo de duas agências governamentais distintas: a Administração do Comércio Internacional – ITA [29]
e o Departamento Internacional de Comércio – ITC [30]. A primeira das duas entidades é parte do Departamento de Comércio [31]
e a segunda é uma agência governamental sem dependência específica a um dado ministério. Em um procedimento anti-dumping, a ITA determina se os produtos importados estão sendo vendidos a preço inferior ao justo e o ITC apura se houve dano à indústria doméstica e trata de quantificá-lo. Por sua vez, a alfândega nacional [32]
aplicará eventuais direitos anti-dumping.
6.5. O espírito de maior juridicidade havido na Rodada Uruguai impactou de forma positiva o acordo anti-dumping que, uma vez implementado como legislação ordinária nos EUA, teve o condão de reduzir alguns dos notórios abusos do sistema norte-americano. Dentre tais abusos situava-se a metodologia de se misturar mesmos produtos de países diversos para a determinação do dano. Esta prática revelou-se infame no caso contra a Fundição Tupy, em que a ITC, para conseguir comprovar um dano à indústria doméstica, somou dados do Brasil, da Coréia e de Taiwan para fazer uma conta de chegar [33]. O Brasil é uma grande vítima do uso iníquo, pelos EUA, do regime anti-dumping como instrumento do protecionismo, tendo setores importantes de sua economia prejudicados como o do aço, calçados e suco de laranja.
6.6. Outra prática americana que se procurou debelar foi a de se manter direitos anti-dumping por prazo indeterminado que, em alguns casos, chegavam a 20 anos. Isto se procurou fazer através da chamada cláusula “pôr do sol” [34], que obriga a uma revisão decorrido o prazo de cinco anos.[35]
6.7. De qualquer forma, não obstante os progressos alcançados no âmbito da Rodada Uruguai, ainda permanecem, na legislação interna dos EUA, algumas enormes inconsistências com a ordem jurídica multilateral, que permitem o uso abusivo da legislação anti-dumping como instrumento do protecionismo comercial. Tais inconsistências apresentam-se, por exemplo, na questão da determinação do preço final; na determinação dos custos pré-operacionais; na determinação do ponto de equilíbrio; na questão da produção cativa; na questão do preço médio e na do preço de exportação.
7.1. A globalização das economias e as relações econômicas internacionais entre os Estados não prescindem do alicerce legal do império da lei e do estado de direito. Ao contrário, seus objetivos jamais serão alcançados fora de um arcabouço legal equitativo e exeqüível. Certamente, ao prevalecerem seja a anomia, seja o unilateralismo e o exercício arbitrário das próprias razões em matéria internacional, teremos a subversão das relações entre os Estados, com a subordinação de um Estado a outro. Mais ainda, as conseqüências para os nacionais dos Estados subordinados serão efetivamente dramáticas, porque serão eles condenados à miséria e ao oblívio, em triste sacrifício aos bolsões de afluência estabelecidos em uns poucos Estados dominantes.
7.2. Assim, tanto como decorrência da ordem natural das coisas, bem como do bom-senso e de um sentimento básico de justiça, uma efetiva juridicidade internacional deve preceder os acordos regionais e mesmo os multilaterais devem atentar para esta condição absolutamente essencial. Dentro desta perspectiva, não somente são de fundamental importância iniciativas visando a dar uma formatação jurídica básica às relações internacionais, como é o caso da Convenção de Viena sobre a Lei dos Tratados, bem como aquelas que visam, na ordem jurídica interna dos países, aceitar a existência e a prevalência do Direito Internacional.
7.3. Decorre de minha exposição de hoje que os EUA representam um altíssimo risco jurídico, no mundo de hoje, para seus parceiros comerciais, tanto nas relações regionais, como nas multilaterais. Isto se sucede porque, no Direito dos EUA, na hierarquia das normas, os tratados internacionais situam-se no mesmo nível que a legislação ordinária federal interna. Não bastasse isso, as leis federais internas de implementação dos acordos comerciais internacionais, como já visto exemplificadamente nos casos do Nafta e da OMC, sujeitam sua vigência à inexistência de conflitos com leis internas no país, uma freqüência desgraçadamente constante. O Direto corolário desta situação é que, na prática, o tratado internacional situa-se abaixo da lei federal na hierarquia de normas nos EUA. A existência de leis internas, nos EUA, que promovem o unilateralismo e o arbítrio, como o caso das legislações 301 e anti-dumping, além das dezenas de outras aludidas, só vem agravar consideravelmente o quadro.
7.4. Neste quadro é perfeitamente possível que uma parte privada dos EUA, dentro de acordos comerciais como o Nafta, possa exercer um direito a ela conferida dentro deste acordo comercial, cujo direito não é reconhecido a uma parte privada nacional de um outro país signatário do mesmo acordo. Esta bizarra situação é agravada pelo quadro adjetivo do sistema de resolução de disputas pois, em acordos como o Nafta, os EUA tendem a querer impor seus valores a respeito da administração da Justiça, em seguimento a campanhas de desmoralização do Judiciário de outros países, como lamentavelmente ocorreu anteriormente à visita do presidente Clinton ao Brasil. Assim, dá-se de fato uma transferência das atribuições do Judiciário para a arbitragem privada em questões não somente comerciais mas também de relevante interesse de ordem pública, como ocorreu recentemente no México.[36]
7.5. Desta forma, do ponto de vista do risco jurídico, é hoje uma temeridade pretender negociar e celebrar um tratado comercial com os EUA pela absoluta falta de consistência jurídica interna daquele país com uma ordem legal internacional, pela falta de vocação dos americanos em aceitar a prevalência da lei internacional e pela altíssima probabilidade de se estar celebrando um acordo do qual derivam obrigações, mas que não confere direitos.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).