1. O Tratado de Assunção de 1991, que instituiu o Mercosul, estabeleceu entre os objetivos do bloco comercial a livre circulação de pessoas, mercadorias, serviços e capitais nos países membros. Com o estabelecimento da Tarifa Externa Comum, em 1995, o objetivo da livre circulação de mercadorias foi atingido, embora ainda não plenamente em função das exceções transitórias em vigor. Todavia, o caminho a percorrer para um verdadeiro mercado comum é ainda muito longo. Senão vejamos. O setor de serviços ainda se encontra excluído da união aduaneira, muito embora represente cerca de 50% da economia brasileira e outro tanto da argentina. A livre circulação de pessoas ainda não foi garantida e temos problemas até na movimentação temporária de executivos. E, por último, a questão da livre circulação de capitais esbarra na existência de controles cambiais no Brasil.

2. De fato, não se pode conceber, nos dias de hoje, uma área de livre comércio, e muito menos um mercado comum, com a mínima ambição de eficácia, que prescinda dos setores de serviços e investimentos. Para a inclusão do setor de serviços em um bloco econômico, faz-se necessário assegurar a livre movimentação de prestadores de serviços, no caso de uma área de livre comércio, e a livre movimentação de pessoas, na hipótese de um mercado comum. Para a inclusão da área de investimentos, o pressuposto absolutamente necessário é a existência da liberdade cambial.

3. Tanto na União Européia – UE como no âmbito do Acordo de Livre Comércio da América do Norte – Nafta prevalecem a liberdade cambial e, mesmo no Mercosul, justamente o Brasil, a principal economia do bloco, é o único país ainda a manter controles cambiais. O próprio Acordo sobre Medidas de Investimento Relacionadas com o Comércio (Acordo Trims) celebrado em 1994 no conjunto de tratados que finalizaram a Rodada Uruguai e criaram a Organização Mundial do Comércio – OMC, reconhece expressamente a possibilidade de restrições cambiais impactarem adversamente o livre comércio [1]
. A Decisão 8/93 do Mercosul admite que as restrições às transferências de capitais impõem sérias tensões aos mercados de capitais [2]. De mais a mais, a competitividade internacional de um país com controles cambiais no mundo de hoje é altamente prejudicada, constatação que levou a maior parte dos países emergentes à prática da liberalização cambial.

4. Infelizmente, na liberalização da economia brasileira havida nesta década, o setor cambial manteve-se praticamente inalterado, com a estrutura legal das décadas de 50 e 60 e inclusive com uma anacrônica polícia monetária para o capital estrangeiro no serviço de Fiscalização e Registro de Capitais Estrangeiros do Banco Central do Brasil – Firce. Isto aconteceu no correr dos anos devido à falta de equilíbrio nas contas públicas brasileiras. Mais recentemente, a política cambial aplicada com o chamado Plano Real optou por uma valorização inicial da moeda brasileira estimada entre um mínimo de 12% [3]
e cerca de 25%, para fins do barateamento das importações, o que ajudaria o combate inflacionário, enquanto o país não procedesse às reformas estruturais necessárias para a redução do déficit público.

5. Esta situação de sobrevalorização cambial afetou dramaticamente a competitividade dos setores produtivos brasileiros, já pesadamente onerados pelo chamado “custo Brasil” em termos do comércio mundial, já que seus produtos tornaram-se mais caros do que seus concorrentes nos mercados internacionais. Mesmo nossos parceiros do Mercosul beneficiaram-se enormemente de tal situação, a tal ponto que os empresários e políticos argentinos passaram a se autoconferir o direito de exigir a manutenção de um Real sobrevalorizado. Essa situação levou até mesmo a estroinices exacerbadas como a recente declaração do presidente da Unión Industrial Argentina – UIA, Sr. Carlos Sebastiani, no sentido de que, se o Brasil viesse a desvalorizar sua moeda, haveria a possibilidade de a Argentina colocar um “direito compensatório” (sic) [4]
. A conseqüência inexorável deste quadro é o crescimento do déficit comercial do Brasil, como se pôde observar.

6. A atual crise financeira e cambial que nos aflige no momento é, em um certo sentido, um reflexo da crise mundial que afetou principalmente os países da Ásia, mas essencialmente pela percepção dos mercados e dos investidores internacionais das vulnerabilidades da economia brasileira: o déficit público e o déficit cambial (transações correntes). O primeiro causado pela falta dos ajustes estruturais da economia brasileira e o segundo pela perda da competitividade internacional da nossa economia, por força de uma moeda supervalorizada. Hoje, a percepção unânime dos mercados internacionais e de analistas de peso é que o Real esteja sobrevalorizado de 20% [5]
a 35% [6]
. Esta visão difícilmente irá se alterar por declarações ufanistas de agentes governamentais ou por medidas econômicas cosméticas.

7. Pelo contrário, a percepção da competitividade comercial brasileira no âmbito internacional é, na atualidade, vista ainda com maiores preocupações e reservas como resultado da generalização das desvalorizações cambiais havidas no mundo. Nos tigres asiáticos tivemos desvalorizações monetárias, na Indonésia e na Tailândia próximas de 50%; na Malásia e nas Filipinas, de cerca de 30%; na Coréia e no Japão [7], próximas dos 25%; e mesmo em Taiwan e Cingapura as moedas locais depreciaram em cerca de 15% [8]
. Mais proximamente, o México desvalorizou, nos últimos dias, o peso em torno de 8%, o que deve ser somado à maxidesvalorização de cerca de 50% havida em 1995.

8. Às circunstâncias acima devem se acrescer considerações de ordem doméstica que afetam adversamente nossa capacidade de competição internacional e de atração de investimentos. De fato, o alto nível das taxas de juros, estabelecido em patamar dramático para sustentar o insustentável, elimina a capacidade de alavancagem da indústria doméstica e enxuga o mercado consumidor. Conseqüentemente, os investidores estrangeiros, já preocupados ante a possibilidade de uma desvalorização do Real, vão se desencorajar de suas inversões face à redução do mercado doméstico. Com a redução dos investimentos, a impossibilidade da geração de saldos positivos na balança comercial, o Brasil estará pouco a pouco se alijando dos mercados financeiros voluntários internacionais, pagando juros maiores em um primeiro momento para deixar de ter acesso em uma instância subseqüente.

9. Não deve, de forma alguma, ser menosprezada a gravidade da situação, mas nem tudo está perdido. Se, por um lado, parece claro que não vamos convencer os mercados internacionais com meias medidas, crises como a presente oferecem enormes oportunidades estratégicas para o Brasil. Para aproveitá-las, requer-se uma percepção realista da situação, visão estratégica e ação resoluta, corajosa e imediata. E quais seriam tais oportunidades? Em primeiro lugar, a de equilibrar as contas públicas como resultado de reformas estruturais sérias e profundas; em segundo, a de reduzir o “custo Brasil”; e, em terceiro lugar, a de liberalizar o câmbio, deixando flutuar a moeda. Esta última medida teria o efeito prático e imediato de desvalorizar a moeda, ajustando-a à realidade de mercado. Porém, sua conseqüência mais importante seria a de promover, a longo prazo, a credibilidade institucional da política monetária brasileira.

10. Alguns alertarão para o potencial efeito inflacionário decorrente, mas é plenamente sabido que a inflação não decorre de flutuações cambiais, mas sim dos desajustes estruturais das finanças públicas. Com toda a desvalorização do Yen e do Peso mexicano, não decorreram espirais inflacionárias. Da mesma forma, quando o Reino Unido se retirou do Sistema Monetário Europeu – SME, deixou flutuar a libra esterlina e promoveu sua expressiva desvalorização, a inflação caiu. Outros analistas alertarão para as perdas para os tomadores de empréstimos em moeda estrangeira, o que é uma realidade, mas seguramente o menor de dois males. Também prejudicados seriam os bancos emprestadores, como foi recentemente lembrado pela imprensa internacional [9]
, mas essa situação também seria atenuada pela maior segurança de longo prazo assegurada por uma política monetária consistente. Perderia também a Argentina, mas também esta poderia ajustar mais realisticamente sua currency board, livrando-a do atrelamento a uma só moeda ou, de outra forma, tornando-a mais flexível.

11. Com o resultado de tais medidas estaríamos, sem sombras de dúvidas, retomando a credibilidade internacional do Brasil, assegurando a continuidade dos fluxos de investimento estrangeiro; garantindo o acesso aos mercados financeiros voluntários, fincando profundos alicerces para o progresso do Mercosul e de sua expansão na América do Sul, e bem assim viabilizando a continuidade da prosperidade brasileira.