Londres – No final de janeiro deste ano, representantes dos principais membros da Organização Mundial do Comércio (OMC) decidiram retomar as negociações da Rodada Doha, lançada originalmente em novembro de 2001, e que se encontravam paralisadas há meses por falta de consenso, principalmente por conta da famigerada questão dos subsídios agrícolas.
Como nas rondas anteriores do sistema multilateral do comércio do antigo GATT, a agenda de negociações para a Rodada Doha foi formatada pelos países desenvolvidos de maneira a, mais uma vez, promover a insana lógica da prosperidade de uns poucos, seus cidadãos, em detrimento do progresso dos muitos, aqueles dos países em desenvolvimento.
Assim, pretendem os países desenvolvidos a manutenção de todas as vantagens obtidas no âmbito da Rodada Doha, que correspondem a cerca de 80% dos benefícios gerais da ronda, conforme dados do Banco Mundial, FMI e ONU, inclusive aqueles pertinentes à formatação geral e às chamadas áreas novas, consubstanciadas nos tratados TRIPS, sobre propriedade intelectual; TRIMS, sobre investimentos; e GATS, sobre serviços.
Mais ainda, os países desenvolvidos desejam a manutenção da substância de seus tanto escandalosos como devastadores programas de subsídios agrícolas e maior acesso aos mercados de mercadorias dos países em desenvolvimento, através a redução de tarifas. Requerem ainda os países ricos um maior acesso aos mercados de serviços dos países em desenvolvimento, enquanto mantém os seus próprios fechados, mediante restrições horizontais, inter alia na imigração.
Tal como já ocorrera na Rodada Uruguai do GATT, com o chamado Grupo dos 11, cuja resistência cessou a meio caminho, na Rodada Doha houve igualmente um movimento de rejeição parcial das posições dos países desenvolvidos, através o Grupo dos 20, no qual o Brasil teve papel de destaque. O Grupo dos 20 concentrou sua resistência na questão agrícola, deixando de lado todos os outros graves desajustes ora existentes no sistema multilateral.
Ora, a questão agrícola é sabidamente de grande relevância para os países em desenvolvimento, respondendo o setor no Brasil por aproximadamente 25% do PIB. Contudo, sem desprezo à importância do setor rural, a maioria dos interesses econômicos estratégicos do País situa-se nas claramente áreas de serviços, com 50% do PIB, e da indústria, com 25%.
Além da falta de uma formatação estratégica clara para a negociação das tarifas industriais e do acesso ao mercado de serviços, como fazem os países desenvolvidos, depurando os interesses de seus setores privados, o governo brasileiro negociou com a pouca transparência que tradicionalmente nodoa a atuação do Itamaraty. Essas características dificultam tanto a composição daquilo que seria do interesse nacional, como obstaculam o controle democrático da ação dos representantes de governo.
Nos Estados Unidos da América (EUA) e na Uniao Européia (UE), por exemplo, as posições negociadoras são determinadas após um grande esforço de consulta com os interesses privados. No Brasil, ao contrário, as posições negociadoras são definidas por um grupo restrito de diplomatas, com pouca ou nenhuma consulta aos representantes da iniciativa privada, que representam, como é sabido, a vasta maioria do PIB nacional. Da mesma maneira, não se presta contas ao Congresso Nacional daquilo que se negocia.
Assim, aparentemente em troca de umas míseras concessões acenadas por EUA e, não completamente, pela UE, na área dos subsídios agrícolas, os negociadores brasileiros já teriam feito substanciosas cessões em reduções tarifárias para produtos industriais e no acesso ao mercado de serviços. Quais especificamente teriam sido as cessões nao se sabe, mas especula-se que o Brasil reduziria suas tarifas consolidadas na OMC de cerca de 30% para aproximadamente 11%, ou seja abaixo dos patamares da tarifa externa comum do Mercosul.
É sabido que as tarifas elevadas do Brasil são necessárias para proteger a pouca competitividade internacional da indústria doméstica, dada nossa grotesca e punitiva política macroeconômica. Reduzir as tarifas em cerca de 60% sem corrigir os aspectos distorcivos de tal política, como juros, cambio, tributos excessivos e burocracia, é um verdadeiro suicídio econômico.
Ao invés de tratar da raiz do problema, contudo, o governo resolveu anunciar, dias atrás, o estudo de mecanismos de ajuda a setores da indústria brasileira que serão prejudicados pela redução de tarifas de importação, praticamente todos eles. Trata-se de proposta bizarra e assustadora. De um lado, por ser inexequível e, de outro, por revelar uma disposições ao uso da demagocia barata numa questão que afeta a prosperidade do País e de seu povo.
O Brasil foi um dos maiores perdedores da Rodada Uruguai e pagou um altíssimo preço por isto. Corremos agora o risco de cometer o mesmo erro no âmbito da Rodada Doha. A Nação deve acompanhar atenta os últimos lances das negociações. Há muito a perder.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).