BRASÍLIA – A Espanha superou, na semana passada, uma primeira e séria manifestação da crise constitucional deflagrada com a declaração do comandante do exército, general José Mena Aguado, de que as forças armadas tinham o dever de defender a unidade territorial do país ameaçada pelo Estatuto da Catalunha. O general Mena foi devidamente demitido pelo ministro da defesa Sr. José Bono.
O evento evocou o sombrio precedente do Franquismo, de triste memória e que custou a Espanha cerca de quatro décadas de um regime ditatorial sanguinário e brutal, o qual ainda não foi superado inteiramente pelo país. Franco usara a autonomia da Catalunha como um dos pretextos para o desencadeamento da guerra civil, em que teve o apoio das tropas nazistas de Hitler e fascistas de Mussolini.
Aprovado regionalmente, o Estatuto da Catalunha foi enviado para o parlamento espanhol, as Cortes, para ratificação. O projeto, que é altamente controverso, foi recebido por 197 contra 146 votos e encaminhado à comissão constitucional das Cortes. De fato, Estatuto da Catalunha renova argumentos e invoca conflitos de séculos no tocante à questão da independência ou autonomia daquela região da Espanha.
A constituição espanhola de 1978 já reconhece a autonomia e as características especiais da Catalunha, ao contrário do ocorrido à época de Franco, quando até a utilização do idioma catalão foi proibida. No regime constitucional e democrático, a Catalunha, como de resto todo o país, prosperou e hoje é a região mais próspera do país.
De qualquer maneira, o projeto de Estatuto sofreu mais de 500 emendas, o que evidencia o caráter polêmico da iniciativa. Dignos de nota no projeto são, inter alia, os dispositivos que tratam a Catalunha como nação; os que estabelecem o tribunal regional como a corte de mais alta instância para os residentes na região; e os que determinam que o equivalente a 90% da arrecadação catalã deva ser retido pelas autoridades locais para uso regional.
São essas modificações que teriam potencialmente um forte impacto sobre a estrutura da soberania da Espanha. Os dois itens mais graves são, notadamente, a questões da autonomia absoluta dos tribunais regionais e a apropriação de 90% da receita doméstica. Do ponto de vista estritamente jurídico, trata-se de iniciativas que equivaleriam, se aprovadas, a uma declaração de independência da Catalunha, que se tornaria um país com território, poderes legislativo, executivo e judiciário independentes, e uma arrecadação própria. Sobrariam à Espanha a política externa, já em parte transferida à União Européia, e a defesa.
A Constituição Espanhola de 1978 reconheceu 17 regiões autônomas no país, dentre elas a Galícia, a região basca e a própria Catalunha. Essa situação jurídica permitiu a conciliação democrática, a instalação do estado de Direito no país e, conseqüentemente, uma grande prosperidade econômica e notável desenvolvimento social ao povo espanhol.
É de se esperar que os embates para a modificação constitucional espanhola não coloquem a perder todas essas importantes conquistas.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).