Durval de Noronha considera muito elevado o risco de insolvência dos EUA
O brasileiro Durval de Noronha Goyos, advogado e professor especialista em comércio internacional, vê a crise financeira e económica actual como tendo riscos muito mais elevados do que a de 1929, devido à dimensão da alavancagem financeira que lhe está subjacente e à gestão da situação que tem sido feita pelos Estados. O maior risco, afirma, é o de uma substancial depreciação do dólar, devido à possível insolvência da política orçamental dos Estados.

Na sua opinião, a injecção maciça de dinheiro dos países nas respectivas economias pode fazer com que percam acesso aos mercados voluntários de crédito e ver as suas moedas degradadas – cenário que pensa fazer actualmente parte do planeamento estratégico de empresas e Estados. As suas perspectivas são particularmente negativas em relação aos EUA, cujo risco de insolvência vê como “muito alto”.

Se chegarmos a uma desvalorização absoluta ou substancial da moeda americana, “vamos ter uma grande queda da actividade económica e financeira mundial”. Desprovidos do valor das suas reservas em dólares, os Estados ficariam sem condições de sustentar o seu comércio internacional. Nesse caso, “teremos um aumento do proteccionismo e um renascimento do mercantilismo”.

PÚBLICO –Quais os maiores perigos associados à crise internacional?
Durval de Noronha Goyos – Hoje temos o risco de insolvência dos Estados. E se a crise evoluir pelo lado da insolvência dos Estados e desvalorização das moedas nacionais, vamos atingir um patamar negativo jamais antes alcançado.

Poderemos ter uma crise pior do que a de 1929 e anos 1930?
Muito pior. Devido à alvancagem financeira e à gestão que está a ser feita da crise. O que é que está a ocorrer? A primeira reacção dos Estados foi isolada. Não houve coordenação internacional, não se recorreu aos organismos internacionais, nem se respeitou o que está acordado nos organismos internacionais. Nenhuma política foi tomada pelos EUA, ou pela UE, ou pela China, ou pelo Brasil, em conjunto com o Banco Mundial, de acordo com as normas do FMI, com as normas da OMC e do GATT.
Foram tomadas medidas isoladas, de carácter nacionalista, e frequentemente em violação dessas normas. Isso acabou com o neoliberalismo e acabou com o multilateralismo. Porque as normas dessas instituições financeiras são hoje incompatíveis com as acções que têm sido tomadas pelos Governos.

Não está a ser demasiado radical?
Tanto é que o Banco Mundial produziu um estudo de acordo com o qual 17 países do G20 lançaram mão de políticas unilaterais de apoio estatal à produção, em violação das normas da OMC e do GATT (do regime multilateral do comércio).
De cada vez que um Estado dá dinheiro para garantir o buraco de um banco faz um investimento directo numa empresa, compra acções, dá subsídios, benefícios fiscais, ou, como no caso da China, dá incentivos directos à indústria têxtil, está a violar normas do regime multilateral do comércio. Isso colocou esse regime em xeque e não se sabe como ele irá evoluir a partir deste momento.
Persiste o risco dos Estados. Como será a economia americana em 2010? Como o Governo vai financiar o défice orçamental? Vai emitir títulos? Vai vender esses títulos a quem?

Recentemente o banco central dos EUA decidiu comprar títulos do Tesouro dos EUA a longo prazo (300 mil milhões de dólares) e expandir a compra de activos imobiliários (mais 750 mil milhões)…
Esse é o problema. Digamos que os EUA têm uma necessidade de financiamento de 30 por cento do PIB este ano. Que seriam 3,9 milhões de milhões, ou, arredondando, quatro milhões de milhões. Quem é que vai comprar títulos americanos nesse valor? A China, que tem grandes reservas?

E como iriam os EUA gerar capacidade de pagar?
Mas nem a China tem essa quantia, e está a tentar diversificar aquilo que tem. Estão a vender os títulos do Tesouro [dos EUA] e a comprar outros valores internacionais. Investem em mercadorias, agrícolas e outras, e outros países estão a fazer o mesmo. É improvável que os EUA consigam colocar um valor tão alto de títulos do Tesouro nos mercados internacionais. Por isso, vão ter que emitir moeda. Mas, com uma quantia tão elevada, vamos ter uma depreciação da moeda americana e uma pressão inflacionista muito grande.
Com a depreciação da moeda, há dificuldades de financiamento do défice na moeda nacional. Porque a grande vantagem dos americanos, durante todo este período, tem sido deverem sempre na própria moeda, porque existiam tomadores para essa moeda. E dever na própria moeda é um privilégio… Quando não se consegue recorrer aos mercados financeiros ou monetários na própria moeda, tem de se recorrer na moeda dos outros, assumindo-se um risco cambial. De cada vez que a moeda própria se deprecia, mais se deve. E isso é outro factor a colocar pressão na espiral orçamental e económica negativa nacional [dos americanos].

Porque é que dá tanta importância à alavancagem financeira?
O PIB mundial são 50 milhões de milhões de dólares. O valor dos derivados está entre 600 milhões de milhões e 700 milhões de milhões. O PIB americano é de 13 milhões de milhões. Então, a vasta maioria desses valores não tem correspondência real. São valores inflacionados. Estourando a bolha, teremos uma queda de 600 milhões de milhões para 50 milhões de milhões, ou seja, uma perda de 550 milhões de milhões, que é uma perda brutal. E esses recursos, os derivados, criaram uma prosperidade artificial.

Mas a desvalorização foi porque a bolha rebentou. Agora o valor contabilizado será de 50 milhões de milhões, como o PIB mundial?
Quando bater no fundo… Ainda não chegámos a esse ponto, porque há diversas intervenções de Estado e não tivemos essa queda. Mas corremos riscos institucionais enormes. Por exemplo, nos EUA. Temos gestões orçamentais de apoio à economia, que estão a comprometer a política orçamental americana. Qual é o valor do PIB americano já comprometido em investimento do Estado? Cinquenta por cento? Sessenta por cento? Até que ponto uma moeda, por mais prestigiada que seja, por poucas alternativas que tenha como moeda de reserva, consegue sustentar-se com um problema orçamental tão grave?
Primeiro, há uma queda dos valores mobiliários, depois uma possível insolvência da política orçamental dos Estados que estão a pagar os subsídios. Podem perder acesso aos mercados voluntários de crédito e ver a sua moeda degradada.

Risco de insolvência “muito alto”

O risco de insolvência dos EUA é alto?
É muito alto. A principal questão estratégica da crise é como manter o equilíbrio monetário. Como sustentar a moeda. Acho mais importante sustentar a credibilidade da moeda do que ter estas gestões de apoio ao sistema financeiro, para, digamos assim, assegurar a capilaridade do sistema.

O euro não pode assumir facilmente o papel do dólar?
O euro pode assumir gradualmente. Mas neste momento não pode substituir ainda o dólar, porque entre 60 e 70 por cento das reservas mundiais, aproximadamente 70 por cento, estão em dólares. O restante está principalmente em euros, mas mesmo assim é muito pouco. Porque as reservas internacionais em euros não chegam a metade das de dólares. E o euro ainda carece de aperfeiçoamentos, porque é uma moeda que tem falhas na sua concepção, por não estar associada a um regime fiscal único. Mas é a única alternativa que temos.
Se chegarmos à posição extremada de um grande risco de aviltamento, ou o aviltamento absoluto ou substancial da moeda americana, vamos ter uma grande queda da actividade económica e financeira mundial. Porque teremos perdas gravíssimas. Teremos países com as suas reservas, em dólares, a desaparecerem, sem condições de sustentarem o seu comércio internacional devido ao desaparecimento das suas reservas, perdendo a estabilidade internacional. Teremos um aumento do proteccionismo e um renascimento do mercantilismo.

Corremos o risco de voltar à economia de subsistência?
Parei um passo antes, parei no mercantilismo, que foi o meu cenário. Mas a economia de subsistência coexiste com o mercantilismo. Porque o mercantilismo vai dar o excedente à economia de subsistência, para as trocas ou para garantir a economia de subsistência.

Troca-se o essencial para conseguirmos produzir para consumir?
Sim.

Mas os principais actores não parecem empenhados na defesa do dólar?
Parece que o Governo americano, para salvar os seus principais agentes económicos e a sua política histórica, está prestes a sacrificar o dólar americano. Isso terá consequências muito graves para a humanidade como um todo.
Porque se, por um lado, vai permitir aos EUA desembaraçarem-se da sua dívida externa (pelo aviltamento da sua moeda, eles devem nela), por outro lado, vai causar dificuldades para o financiamento da sua economia e vai induzir uma grande depressão mundial. Não temos à nossa frente cenários fáceis.

Esse cenário está a ser considerado pelos governos?
Acho que hoje esse cenário faz parte do planeamento estratégico de empresas e Estados. O Brasil tem reservas de 200 mil milhões de dólares, 75 por cento delas aplicadas em títulos do Tesouro americano. Se houver uma depreciação substancial da moeda americana, o país corre o risco de 75 por cento das suas reservas virarem pó.
Imagine-se os reformados que têm as suas pensões denominadas em dólares americanos. Se o dólar se pulveriza, o que vão receber de reforma? Isso é a consequência dramática da erosão da moeda. E nunca aconteceu nos EUA. Na Europa, temos exemplos mais recentes, na Alemanha pós-Primeira Guerra, e mesmo após a Segunda Guerra. Nos países do Leste europeu. Até alguns países da Europa Ocidental tiveram problemas com a moeda. Na América Latina, nas últimas décadas houve trocas de moedas e as populações sofreram profundamente devido à desvalorização das moedas nacionais. Mas nos Estados Unidos jamais isso aconteceu.

Estados “querem” tributar “off-shores”

A eventual mudança do regime dos paraísos fiscais, ou mesmo seu fim, não pode ajudar os orçamentos dos Estados?
Sabemos que os paraísos fiscais foram uma criação dos regimes inglês e americano, principalmente, e que depois foram adoptados noutros países, fora desse regime, mas muitos deles criados pelos americanos ou pelos ingleses em países terceiros com pouca viabilidade económica ou com pouca actividade na economia real. Hoje, os EUA, que é um grande paraíso fiscal, e o Reino Unido, que também é um grande paraíso fiscal, com as ilhas do Canal, têm cerca de 40 por cento dos recursos “off-shore” mundiais, que são de cerca de 20 milhões de milhões de dólares.

Isso também era uma forma de financiarem as suas economias?
Sim. E gerar actividade económica para esses mercados financeiros, através da fraude, normalmente aos regimes tributários dos países em desenvolvimento. Porque o regime de paraíso fiscal viabiliza a fraude aos regimes tributários e muitas vezes viabiliza até a actuação crime organizado.
Os ingleses sempre defenderam isso, o próprio primeiro-ministro britânico [Gordon Brown], antes foi ministro das Finanças e sempre sustentou o regime dos paraísos fiscais. Agora, os ingleses e os americanos querem limitar o regime dos paraísos fiscais. Porquê? Porque querem tributar essa riqueza. Há 20 milhões de milhões de dólares em regime de “off-shore”, se se conseguir tributar 20 por cento disso, são quatro milhões de milhões de dólares. Seria uma receita extra para fazer face aos buracos nos orçamentos desses países. Isso é mau? Não. Seria um desenvolvimento positivo, que pode minimizar o efeito dos défices orçamentais É lamentável é que o mundo tenha de chegar a esta situação para acabar com esta imoralidade internacional e poder sustentar o regime de direito no âmbito multilateral na área tributária.

Mas parece-lhe que poderá haver um fim total dos regimes “off-shore”? Ou mudariam apenas alguns aspectos do seu funcionamento?
É provável que esse regime acabe.

Como é que é possível pensar em chegar a este ponto?
É uma crise do neoliberalismo económico. É uma crise da doutrina económica e é uma crise das instituições desenvolvidas a partir desta doutrina e das manifestações dessa doutrina nos mercados financeiros. Todas as instituições multilaterais do pós-guerra foram inspiradas pelo neoliberalismo.

A Europa viveu entretanto um período de social-democracia, diferente do neoliberalismo e que conviveu com essas instituições…
Sim, mas pouco a pouco o neoliberalismo foi ganhando terreno. Originalmente essas instituições foram inspiradas pelos ingleses e pelos americanos. É o caso do Fundo Monetário Internacional (FMI), do Banco Mundial e do Acordo Geral de Tarifas e Comércio, o GATT [na sigla em inglês]. E além da social-democracia havia a União Soviética e os países a ela alinhados. Com o decorrer do tempo, tivemos uma clara vitória do neoliberalismo sobre as demais doutrinas económicas. Tanto é que, com a queda do Muro de Berlim e a extinção da URSS em 1991, pretendeu-se até mesmo proclamar o fim da história.

Produtos “fraudulentos”

O liberalismo tem mecanismos para assegurar o seu funcionamento…
Os banqueiros de investimento inventavam produtos dissociados da realidade, que são na realidade fraudulentos. Tínhamos agências de avaliação de risco que emitiam um critério de juízo sobre esses produtos e essas organizações. Tínhamos auditores que verificavam esses produtos, os bancos que os emitiam e as empresas que os compravam. E tínhamos advogados que documentavam toda essa grande construção irreal.

E os bancos centrais?
Demitiram-se. Deixaram de exercer a actividade reguladora. Tínhamos toda uma actividade empresarial montada como um castelo de cartas, era como uma nuvem de fumo. Ao dissipar-se a nuvem, essas pessoas dessa cadeia vão ocupar-se de quê?
Até mesmo a Securities and Exchange Comission (SEC) dos EUA, que tinha um poder extraordinário, criada exactamente para prevenir os problemas de mercado, foi sendo gradualmente castrada. A própria separação entre bancos de investimento e bancos comerciais, que os EUA criaram para evitar que os bancos comerciais fossem contaminados pelos produtos dos bancos de investimentos, foi eliminada. As economias desses países tornaram-se economias de serviços, largamente dependentes dos mercados financeiros, que passaram a actuar sem regulamentação, com muito pouca interferência do Estado, com base no conceito de auto-regulação, que é uma contradição em si próprio. Porque o operador não se regula. O operador quer liberdade.
E ao mesmo tempo que se reduziu dramaticamente a regulamentação e o papel dos governos na regulamentação dos mercados, cresceu exponencialmente o número de produtos financeiros derivados, a maior parte dos quais sem lastro. A crise de 1929 começou também com derivados imobiliários, no estado da Florida, principalmente, e na Califórnia, onde havia as chamadas companhias “trust”, que eram companhias de participações, em que uma tinha acções da outra, e que lançavam os seus papéis em bolsa, que eram também derivados. Mas na crise de 1929 o grau de alavancagem era muito inferior àquele a que chegámos agora.

Não haverá também questões comerciais e económicas que potenciam esta crise? Por exemplo, o grande desequilíbrio nas trocas entre os EUA e a China e o Sudeste da Ásia e a significativa desindustrialização do Ocidente decorrente em parte das grandes diferenças de custo de produção entre estes dois blocos? E no caso dos EUA, ainda os grandes custos associados às guerras no Iraque e Afeganistão?
A desindustrialização também decorreu do neoliberalismo. Privilegiou-se o sector financeiro de serviços, e as economias dos países desenvolvidos passaram a ser formadas principalmente pelo sector de serviços (80, 90 por cento, noventa e poucos por cento no sector dos serviços), devido ao peso desproporcional do sector financeiro. E porque é que o sector financeiro passou ter um peso tão importante? Porque foi permitido o lançamento de produtos derivados totalmente dissociados da economia real, dos negócios jurídicos efectivos. Foram emitidos derivados até sobre o preço de frete, sobre o tempo, totalmente dissociados da realidade económica subjacente, do negócio jurídico subjacente, às vezes sem negócio jurídico.
Ao privilegiar o sector de serviços e a sua remuneração, pouco a pouco, o sector industrial foi sendo transferido para países onde as situações institucionais permitiam o pagamento de baixos salários e custos mais baixos. Chegou-se até a promover políticas bizarras, apoiadas pelo FMI, no sentido de que mais próspero seria o país em desenvolvimento, ou mais sucesso teria o país, quanto mais indigente fosse a sua população. A competitividade internacional do país aumentaria na directa medida da indigência da sua população. É uma polícia bizarra para os países em desenvolvimento e para os países desenvolvidos. Porque cria desigualdade e a injustiça internacional e desassocia os países desenvolvidos da economia real, ficando dependentes de uma economia fictícia, lunática, irreal.
Com o estouro da bolha financeira, onde é que essas pessoas vão trabalhar?
Substituir importações?

Se a resposta a esta crise implicar um crescimento significativo da produção de bens nos países desenvolvidos, não terá de haver uma mudança radical no comércio internacional, com a China em particular? Os chineses não terão de repensar a sua inserção na economia mundial?
Certamente. Um terço do PIB chinês, aproximadamente, deve-se ao seu comércio externo, por isso vai haver um arrefecimento pronunciado do crescimento económico chinês, porque o país não vai conseguir aguentar o presente perfil do comércio internacional. Vai aumentar o proteccionismo, como eu disse antes, porque os líderes precisam criar emprego. E vão incentivar o que as Nações Unidas fizeram para os países em desenvolvimento, décadas atrás, que são os programas de substituição de importações.
Os governos precisam de cria trabalho. Como? Com obras públicas. Mas não só, porque os recursos são limitados. Então, vem aí o proteccionismo – substituição de importações. Provavelmente isso vai acontecer.
Então, o comércio internacional já diminuiu e vai diminuir ainda mais, através de medidas que são inconsistentes com a ordem jurídica multilateral. Isso vai comprometer toda a razão de ser de organismos como a OMC, o FMI, etc. Vão ter de ser reinventados para o futuro.
E há outro aspecto, muito lógico: como é que nesta situação de ruína orçamental e de profunda crise económica os países, nomeadamente os EUA, poderão continuar a sustentar os gastos militares nos patamares prévios? Isto é, em termos macroeconómicos, esses gastos são insustentáveis, são injustificáveis de momento.

Mas politicamente parecem imprescindíveis…
Esses gastos militares também distorceram a economia de alguns países, nomeadamente dos EUA. Porquê? Porque grande parte das vendas das empresas americanas, as que ainda fabricam, é devida ao consumo do Estado e das forças armadas, ou relacionada com oportunidades decorrentes. Veja-se a aventura ilegal e criminosa do Iraque, por exemplo. Isso repercute-se até na prestação de serviços domésticos educacionais. Hoje, o povo americano não tem recursos para mandar os seus filhos para a universidade. E a única forma de uma pessoa do povo viabilizar os estudos superiores dos filhos é eles servirem as Forças Armadas do país, porque aí o Governo paga. Hoje, o recrutamento para as Forças Armadas dos EUA dá-se até antes da universidade, na escola secundária.
Nos EUA, a maior parte da economia é viciada pelo efeito destruidor dos derivados, e outra parte é viciada pela dependência artificial do sector militar.

Está quase a dizer que estamos à beira do ocaso do império americano… Não acha que eles terão capacidade para se regenerarem sem perderem grande parte da supremacia que têm tido?
Sem o dólar, o império americano deixará de existir e até mesmo a existência una da federação poderá estar em causa.

Em que horizonte temporal?
Depende muito. Esse processo pode acelerar-se.

Mas acha que esse processo é inevitável. Isso não será apenas um cenário pouco provável? Os EUA não terão ainda capacidade para evitar uma degradação muito forte da sua posição no contexto internacional, reerguendo-se como fizeram de pois da Grande Depressão dos anos 1930?
Isso apresenta-se uma tarefa muito difícil de momento. Parece-me improvável. Certamente que é um grande desafio… Por isso é que digo que a grande missão para manter um certo nível de prosperidade mundial seria a defesa do dólar.

Qual o modo mais provável de os governos e as instituições virem a lidar com esta crise?
A gestão da crise é preocupante, porque a impressão que tenho é que ela está a ser orientada pelos mesmos vícios que estiveram na sua origem. Isto é, a defesa a qualquer custo do sector privado, ainda que à custa dos recursos públicos. E esse é um caminho viciado, que leva inexoravelmente à insolvência do Estado – porque o grau de alavancagem é muito superior à capacidade de gestão do Estado. A meu ver, o Estado não pode pretender sustentar a falência do sector privado na magnitude em que ela ocorreu. Não tem condições para o fazer.
Mas as manifestações que tivemos são de que os EUA estão a garantir os défices do sector privado. Isso é impossível de fazer. O dinheiro aí colocado até agora, em grande será perdido ou provavelmente já está perdido. E não haverá condições para retomar a economia.
A gestão tem sido feita em primeiro lugar unilateralmente, visando os interesses domésticos e orientada pelos “lobbies” privados domésticos dos sectores que estão falidos. Não houve ainda uma formatação da gestão visando o interesse público, porque ela iria certamente exigir o sacrifício de segmentos privados muito importantes. Iria representar uma socialização de sectores muito amplos da economia desses países. O que nos EUA, no Reino Unido e muitos outros países é uma equação satânica, inaceitável.

E como é que esta crise deveria ser gerida?
Os recursos públicos jamais deveriam ser utilizados para o resgate de posições privadas. Primeiro, porque esses recursos são públicos e são insuficientes. E, ainda que fossem suficientes, eles iriam causar assimetrias. Se tenho três empresas num sector, A, B e C, e faço investimento público na empresa A, vou dar uma alavancagem competitiva muito grande à empresa A, face às empresas B e C, domesticamente. Então isso é insustentável juridicamente, no âmbito nacional. No âmbito internacional, o efeito é o mesmo.
O Estado deveria utilizar os recursos para entrar nos sectores em que deve entrar e gerir o sector ou o segmento do sector em nome público. Posteriormente, pode retirar-se desse sector, quando viabilizado. Se a gestão directa do sector ou da empresa, não for do interesse público, então o Estado deve permitir que se aplique a solução do direito privado: a empresa está insolvente, vai à falência. Nesses caos, os Estados terão de reconhecer forçosamente a falência de grande parte dos segmentos afectados [pela crise], porque faltam recursos para que possam intervir em todas as áreas.

Se houver uma gestão equilibrada e com sucesso da intervenção do Estado na economia, que tipo de cenário económico é que poderemos esperar?
O primeiro cenário é de readequação do sector financeiro à economia real. Isso vai representar não só a falência de grandes partes do sector financeiro privado, mas uma queda generalizada do padrão de vida das pessoas, e da receita tributária dos Estados. Então, teremos um retrocesso, até porque a alegada prosperidade dos últimos anos, principalmente destas duas últimas décadas, é artificial. E sem essa riqueza, teremos de regredir a um patamar realista, e isso vai causar uma frustração de expectativas do povo de um modo geral, com repercussões políticas graves. Vai causar uma repercussão negativa nos homens públicos, nos investimentos públicos, nos formuladores de política externa. Se o orçamento não permite… É como numa família. Esta readequação económica é inexorável.

Mas que diferença é que pode fazer para a vida dos Estados e das pessoas haver uma gestão da crise mais adequada, com fundos públicos bem aplicados, ou menos adequada?
Não estamos a ver uma boa gestão da crise, uma gestão responsável da crise. Estamos a ver uma gestão orientada para os sectores privados afectados, que foram exactamente os responsáveis pela sua origem.
Os recursos públicos não são suficientes. Por isso é que devem ser utilizados inteligentemente e, na medida do possível, de modo a evitar a ruína da moeda. Porque, se houver a depreciação da moeda, o aviltamento parcial ou absoluto da moeda, aí sim, vamos ter uma crise mundial sem paralelo na história. Porque ficaremos, pela primeira vez, em muitos, muitos anos, sem uma moeda internacional de troca.

Acha que nem vale a pena pensar num cenário de boa gestão?
Vale a pena pensar. Mas o que observamos hoje é uma má gestão. Não há uma saída ideal para um problema desta magnitude. Mas a saída para uma boa gestão implicaria repensar toda uma filosofia de vida, todo um regime político. Como viverão os nossos povos numa situação de economia real? O jogador de futebol vai poder ganhar o que ganha hoje ou vai ter que ganhar o que ganhava o Eusébio e o Pelé? A dona de casa vai poder ter tudo o que tem hoje? O trabalhador ou trabalhadora vão poder receber o que recebiam recentemente ou vão ter de fazer concessões? Haverá empregos disponíveis? Oportunidades de trabalho nessas áreas artificiais? Teremos uma crise do mercado de trabalho.

Pensa que vai haver deflação?
Sim

Na Europa esse cenário é provável?
Sim.

Espera recessão no Brasil?
O Brasil é menos dependente do comércio externo do que a China. Mas isso não quer dizer que esteja imune a uma crise mundial. Tem é condições de se sair de uma crise mundial melhor do que talvez a maioria dos outros países. Temos dinamismo, como na China, mas pouca dependência do comércio internacional (pesa cerca de 15 por cento no PIB) e temos um grande mercado interno. O sector financeiro não está comprometido, como está nos EUA e no Reino Unido. É mais sólido, mas não será imune.

Como é que as relações comerciais entre Portugal e o Brasil poderão evoluir neste contexto?
Como o Brasil será menos afectado, provavelmente as relações bilaterais com Portugal irão aumentar. Para Portugal, as oportunidades com o Brasil, não em termos absolutos, mas em termos proporcionais, deverão ser maiores.

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Perfil: advogado e académico poliglota

Durval de Noronha é árbitro da Organização Mundial do Comércio
Durval Noronha Goyos é um especialista em direito internacional, sobretudo na área comercial. Tem actividade como advogado, com licença para exercer no Brasil, Portugal e Inglaterra, e como professor em várias universidades. É árbitro da Organização Mundial do Comércio (OMC) – isto é, faz parte da lista de juristas de vários países chamados a decidir sobre os diferendos comerciais entre os Estados.

O seu escritório, a Noronha-Advogados, do qual é sócio principal, tem sede em São Paulo e filiais em seis cidades brasileiras e também em Buenos Aires, Miami, Lisboa, Londres e Xangai, e actividade em muitas áreas de direito internacional e também na de mercados de capitais e tributário.

No currículo de Durval Noronha estão também vários livros sobre Direito e exerce presentemente funções como coordenador e professor dos programas de Direito do comércio internacional da Escola Paulista de Direito, em São Paulo.

Foi professor visitante, investigador ou conferencista dos programas de pós-graduação da Universidade de Londres (Reino Unido), da Universidade Wits, UNISA e Universidade do Cabo (África do Sul), do Instituto de Comércio Internacional (Índia), da Universidade Autónoma de Lisboa, da Universidad 3 de Febrero (Argentina), da Faculdade de Direito do Instituto do Comércio Internacional (Xangai), Universidade Central e Universidade Tsinghua (Pequim).

Fala inglês, italiano, espanhol, francês, mandarim e latim. Publica frequentemente artigos na imprensa brasileira e colabora com publicações especializadas brasileiras e de outros países. 

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