SÃO PAULO – Durante a Rodada Uruguai do então Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT), lançada em 1986, quiseram os países desenvolvidos incluir no sistema multilateral de comércio as chamadas áreas novas, dentre as quais os setores de serviços. A tal intento, opuseram-se os países em desenvolvimento reunidos no chamado Grupo dos 11, liderado por Brasil e Índia, que alegavam, inter-alia, que a inclusão do setor terciário na formatação jurídica do comércio internacional faria com que os menos privilegiados se tornassem compradores de serviços dos países desenvolvidos. O Grupo dos 11 alegou ainda uma situação de non sequitur, no que não faria sentido a liberalização dos serviços antes daquela do comércio tradicional, como por exemplo a do setor agrícola.
No curso da Rodada Uruguai, em 1991, sucumbiram os países em desenvolvimento e, assim, foram impostos termos draconianos para a liberalização de serviços por parte dos países desenvolvidos. Em 1994, com o fechamento da Ronda, foi assinado o Acordo Geral de Comércio em Serviços (GATS), um monumento tanto etnocêntrico como leonino, que evoca os tratados desiguais do século 19. O GATS produziu a façanha indecorosa de liberalizar quase todos os serviços de interesse dos países desenvolvidos e quase nenhum de interesse dos países em desenvolvimento.
De fato, o GATS apresenta quatro módulos de prestação de serviços, a saber: 1) o transfronteiriço, mediante o qual um provedor de serviços presta-os de seu país a um consumidor num terceiro Estado; 2) o de consumo no exterior, que é a permissão por exemplo de um cidadão de um país buscar assistência médica num terceiro Estado; 3) a presença comercial de uma empresa de um país num terceiro Estado; e 4) a presença de pessoas naturais.
Ora, os módulos 1 e 2 já são de há muito prática corrente na maior parte dos países do mundo. Restam então os módulos 3 e 4. Os países em desenvolvimento têm maior interesse no módulo 4, já que seus prestadores de serviços, em sua grande maioria, são pessoas físicas, enquanto os países desenvolvidos têm maior interesse no módulo 3, já que seus prestadores de serviços são, em sua grande maioria, pessoas jurídicas.
Ocorre que o GATS não tratou concretamente do módulo 4 e concentrou, na prática, a liberalização dos serviços no módulo 3. Então, indaga-se, teriam ao menos os países em desenvolvimento condições eqüitativas no tocante ao módulo 3 (presença comercial)? Impõe-se tristemente uma resposta negativa, já que os países desenvolvidos uniram-se para criar, paralelamente ao sistema multilateral de comércio, uma barreira horizontal de imigração, com restrições extremadas aos executivos dos países em desenvolvimento, que impedem, na maior parte das vezes, o seu acesso. Na ocasião de sua implantação, e já se fazem mais de dez anos, eu denunciei tal prática espúria, sombria e devastadora, como o “cartel da vergonha”.
Como resultado, dez anos após a assinatura do GATS, os países desenvolvidos passaram a deter 75% do mercado internacional de serviços, enquanto os países em desenvolvimento têm apenas uma fatia de 25% deste mercado. De maneira ainda mais preocupante, nesse período de 10 anos, as exportações dos Estados Unidos da América (EUA) em serviços têm crescido a uma taxa de 10% ao ano, as do Reino Unido a 7% ao ano, as da França a 5,7% ao ano e as do Japão a 4,8%, em igual tempo. Em contrapartida, as exportações de serviços do Brasil têm crescido a 0,6%, as do México a 0,9%, as da África do Sul a 0,3% e as da Índia a 1,2% ao ano.
Mantidas tais proporções numa perspectiva temporal futura, vislumbra-se o quase total alijamento dos países em desenvolvimento dos mercados internacionais de serviços. Um desastre plenamente anunciado.
No entanto, apesar desse quadro auspicioso para os seus interesses, a UE tem exigido do Mercosul, nas negociações bilaterais para um pacto regional de comércio entre os dois blocos, uma ainda maior liberalização de serviços por parte do agrupamento sul-americano, que já quase tudo colocou a perder na Rodada Uruguai.
Na semana do dia 19 de junho, em Bruxelas, os negociadores comerciais da UE e do Mercosul reunir-se-ão para tratativas a respeito das últimas ofertas dos dois blocos. Da parte da EU, não há nada que mude o quadro sinistro descrito acima. Por outro lado, a imprensa argentina noticiou que o Mercosul estaria fazendo uma ampla e generosa oferta de serviços, incluindo os profissionais (e dentro destes os serviços legais). Informações oficiosas do governo brasileiro desmentem a imprensa argentina. Se essa última tiver razão, a concessão a ser feita será desastrosa para o Brasil e para o Mercosul.
De qualquer maneira, a falta de transparência nas negociações internacionais é um obstáculo ao controle democrático das ações do Poder Executivo e ao benéfico debate das questões estratégicas pela sociedade civil.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).