1.1. Sinto-me honrado em retornar à Câmara de Comércio
Suíça para proferir uma palestra em seu almoço mensal. Como a primeira, esta
tem um tema de direito do comércio internacional: “O Regionalismo e os Blocos
Comerciais: A situação da Suíça”. Devo confessar que relutei em aceitar o desafio
do tema, não pela parte do regionalismo e dos blocos comerciais, que são notoriamente
áreas de minha especialização, mas pelas intrigantes complexidades da Suíça
face ao comércio internacional, tanto do ponto de vista presente quanto dentro
de uma perspectiva estratégica.

1.2. Trata-se de questão que, na Suíça, tem dividido
o país já há quatro décadas, desde o final dos anos 50, que viram a criação
da então Comunidade Econômica Européia.[1] Em um país bastante conhecido pela
reserva e falta de grandes paixões, a questão dos blocos comerciais tornou-se,
na Suíça, não surpreendentemente, objeto de calorosos embates.

1.3. Resolvi, todavia, aceitar o desafio de falar sobre
este tema para, como especialista em direito do comércio internacional, dar
uma visão externa do problema. Para tanto, dividi a apresentação de hoje nos
seguintes tópicos:

i) Esta Introdução;
ii) O Gatt; a OMC e o Regionalismo;
iii) Os Blocos Comerciais e o Protecionismo; e
iv) Conclusão: Considerações Práticas e Estratégicas sobre a situação da Suíça.
2.1. O Gatt[2] foi assinado em 1947 originalmente por
23 países, e é o único tratado multilateral de comércio que engloba, ao mesmo
tempo, um sistema de resolução de disputas no âmbito das relações comerciais
mundiais, entre estados soberanos. A partir de 1º de Janeiro de 1995, o Gatt
foi transformado na Organização Mundial do Comércio – OMC[3], com sede em Genebra,
na Suíça, como resultado das negociações da Rodada Uruguai, com um escopo de
abrangência muito maior do que a organização precedente, bem como um grau de
juridicidade consideravelmente superior.

2.2. O tratado do Gatt de 1947, ainda em vigor, estabeleceu
os três princípios basilares da ordem jurídica multilateral:

i) o do tratamento nacional;
ii) o da exclusão de quaisquer barreiras no comércio mundial outras que as tarifárias;
e
iii) o da chamada “cláusula da nação mais favorecida”, ou cláusula NMF.[4]

2.2.1. Em sua essência, o princípio da cláusula da nação
mais favorecida assegura que as normas do Gatt e as concessões comerciais feitas
por um país a um outro parceiro comercial sejam uniforme e consistentemente
estendidas aos demais parceiros comerciais, membros da organização, hoje OMC.

2.3. Todavia, o Tratado do Gatt de 1947 estabeleceu,
em seu artigo 24, uma exceção à cláusula da nação mais favorecida, de tal forma
a tolerar as uniões aduaneiras, mercados comuns ou acordos de livre comércio,
desde que sejam estabelecidos com o propósito de facilitação comercial entre
os países signatários e não o de criação de restrições ou impedimentos comerciais
a terceiros países.[5]

2.3.1. Este dispositivo foi inserido originalmente para
permitir a continuidade dos regimes especiais vigentes até 1947, principalmente
o sistema britânico de preferências. Em um adendo ao Gatt, datado de 1965, admitiu-se
que esta exceção fosse utilizada com maiores facilidades por países em desenvolvimento,
como um passo intermediário de liberalização comercial, ou ainda compondo um
estágio anterior à liberalização multilateral.

2.4. O Tratado do Gatt de 1947 (Artigo 24, parágrafo
7º) sujeita a adesão de um país a uma união aduaneira ou área de livre comércio
à aprovação da iniciativa pela organização (hoje OMC), que estará condicionada
a uma maioria de dois terços (Artigo 24, parágrafo 10). É desnecessário dizer
que os critérios para aprovação tem sido objeto de reiteradas controvérsias
com o passar dos anos; o aumento no número de áreas de livre comércio e uniões
aduaneiras; e as destinações pouco ortodoxas frequentemente a elas dadas no
passado mais recente.

2.5. De fato, entre 1947 e 1994, no final da Rodada Uruguai,
109 Acordos de livre comércio foram notificados ao Gatt, dos quais 33 apenas
no período de 1990 a 1994.

GRÁFICO [6]

3.1. Por ocasião do lançamento da Rodada Uruguai do Gatt
em 1986, a competitividade internacional dos Estados Unidos já se encontrava
em notável declínio. Por outro lado, a Rodada Uruguai registrou a maior resistência
historicamente havida às pretensões comerciais hegemônicas dos EUA que, pela
primeira vez na história do Gatt, deixaram de ditar as regras comerciais de
maneira absoluta. O aumento da juridicidade da OMC [7] em geral, e do seu sistema
de resolução de disputas em especial, passaram a representar um obstáculo adicional
aos EUA, que tiveram, no âmbito do Gatt, o título não muito edificante de os
maiores violadores das normas do comércio mundial.

3.2. Na mesma ocasião, a partir de 1985, observava-se
um outro fenômeno, na então Comunidade Econômica Européia, no sentido de que
suas importações de fora do mercado comum declinaram em aproximadamente 28%.
Este fenômeno foi interpretado pelos EUA como sendo comprobatório do caráter
diversionista comercial da União Européia.[8]

3.3. Esta percepção, pelos EUA, deve ser somada, de um
lado, à perda de sua competitividade comercial e, consequentemente a diminuição
de sua participação relativa no comércio mundial e, de outro, às dificuldades
de dominação do sistema multilateral comercial da OMC. Assim, os EUA se depararam
com a possibilidade de utilização do modelo dos blocos comerciais para promover
o domínio comercial, o que levou o país a alterar radicalmente sua estratégia
comercial. De defensores do multilateralismo passaram a defensores do regionalismo.
Assim, em 1º de Janeiro 1994 passou a vigir o Nafta, [9] o Acordo de Livre
Comércio da América do Norte, celebrado entre os EUA, Canadá e México. Quase
que imediatamente após sua assinatura, os EUA procuraram sua expansão na área
das Américas, através a chamada “Iniciativa das Américas” imposta aos estupefatos
parceiros hemisféricos na chamada “Cúpula de Miami”, ainda em 1994, visando
a criação de uma Área de Livre Comércio das Américas – Alca, [10] para o ano
2005. Iniciativas semelhantes, foram desenvolvidas para a Àsia e para África.

3.4. Na América do Sul, Argentina, Brasil, Paraguai e
Uruguai, com economias grandemente complementares e todos sofrendo as mesmas
conseqüências desastrosas da política de subsídios largamente praticada pela
Europa, EUA, Canadá e Japão, assinaram, em 1991, o Tratado de Assunção para
a criação de um mercado comum.[11] Todavia, o Mercosul, apesar do grande sucesso
regional, por ser pequeno demais em termos de trocas comerciais, não influencia
decisivamente as grandes linhas estratégicas comerciais globais.

3.5. Tal ocorre com as iniciativas bi-polarizantes da
UE e dos EUA. Não há dúvidas que, como presentemente estruturadas, tanto a UE
como o Nafta representam uma grande ameaça ao comércio mundial equilibrado e
eqüitativo e à ordem jurídica internacional, em particular no âmbito do comércio
mundial. Países à margem dos dois eixos antes mencionados ficam ameaçados por
iniciativas predatórias e hegemônicas, como a da chamada Alca.

3.6. Dentro da concepção dos EUA para a Alca [12] está
a exclusão de terceiros países dos mercados dos páises-membros de tal possível
área de livre comércio mediante i) a manutenção do sistema de regras de origem
do Nafta que, com não menos de 400 páginas, representa a fina flor do protecionismo;
e ii) a manutenção de tarifas mais elevadas pelos países em desenvolvimento,
aplicáveis a terceiros países, mas não aos parceiros desenvolvidos da Alca.
4.1. Dentro do cenário global que procurei pincelar anteriormente,
parece-me claro que a Suíça, na situação de isolamento comercial presente, corre
graves riscos comerciais nas áreas de acesso a mercados e de investimentos.
Na primeira, decorre a perda de competitividade dos seus produtos, em função
das mediadas protecionistas supra referidas, como as regras de origem e a combinação
desastrosa de tarifa zero para um fornecedor e tarifa elevada para outro. Na
área de investimentos, em função dos regimes de fluxos financeiros, sujeitos
a controles cambiais em muitos países em desenvolvimento, mas com regime excepcionalmente
livre, como no caso do Nafta, para alguns parceiros comerciais privilegiados,
dá-se um certo grau de risco não muito apreciado pelo sistema bancário.

4.2. Esta situação levará, necessariamente, a uma maior
concentração de investimentos suíços em países pertencentes a blocos, em prejuízo
aos investimentos locais. Tal fenômeno já ocorre nos dias de hoje, inclusive
no tradicional setor financeiro, que está migrando para os centros de Londres
e Nova Iorque.

4.3. Como conseqüência, o desemprego na Suíça situa-se
hoje em níveis historicamente bastante elevados, estimando-se o percentual de
aproximadamente 6% para o final deste ano.[13] De mais a mais, a economia Suíça
é recessiva, tendo o produto bruto doméstico caído quase 1% em 1996, depois
de um ano de estagnação, em 1995, e apesar de uma grande desvalorização do franco.

4.4. A optar pela continuidade deste isolacionismo comercial,
a Suíça, em meu modo de ver, dependerá estrategicamente de um fortalecimento
considerável do sistema da OMC, em seu escopo de abrangência, profundidade e
em sua estrutura jurídica, para coibir os propósitos hegemônicos das iniciativas
regionais do Nafta e da UE. Ainda que tenha sucesso em tal intento, aliada a
países como o Brasil e o Japão, o isolacionismo da Suíça traz ainda, no mundo
de hoje, dificuldades diplomáticas em situações de confrontação internacional
com poderes maiores.

4.5. Alternativamente, tem a Suíça a opção de juntar-se
à UE, que tem como um de seus objetivos estratégicos a expansão para o leste
europeu e até para a Ásia. Estima-se que no ano 2010 a UE já tenha se expandido
dos atuais 15 para 30 membros. Atingido tal objetivo expansionista, fica difícil
de se imaginar uma Suíça voltada para si própria, insularizada e isolada.

4.6. Em qualquer dos casos, todavia, seja na hipótese
da adesão à UE, seja na hipótese do fortalecimento da OMC, a dinâmica dos respectivos
processos importaria em uma grande transformação social interna na Suíça, como
reflexo do desmonte de estruturas incompatíveis como o sistema de subsídios
agrícolas e a modificação de parte do setor financeiro. Para que se possa ter
uma idéia do desafio no setor agrícola, hoje possui a Suíça, para uma população
de aproximadamente 7 milhões de pessoas, cerca de 115 mil trabalhadores rurais,
[14] que recebem em subsídios US$ 5.5 bilhões ano [15] ou US$ 47,826 per capita
por ano. Este volume representa cerca de 2.5% do PNB suíço. Por sua vez, o setor
financeiro, fonte de grande parte da prosperidade suíça, que já se encontra
sob forte pressão internacional, teria que ajustar o segmento bancário privado
para torná-lo mais restritivo.

4.7. Não são alternativas fáceis e ambas exigem aquilo
que uma sociedade conservadora menos aprecia: mudanças.