Exmo. Senhor Dr. Durval de Noronha
Minhas Senhoras e meus Senhores
Quero Agradecer, antes de mais, o honroso convite que me foi feito pelo Senhor Dr. Durval de Noronha para aqui estar hoje junto de vós.
Devo começar por referir que ao preparar esta minha intervenção sobre os direitos humanos senti-me constrangida. Não encontrava palavras para expressar o que sentia perante as imagens que me chegavam, e a todos chegaram certamente, do conflito no Iraque. Perante o recurso a um arsenal de armas, as mais potentes e sofisticadas que deixavam, que estão deixando enormes sulcos de sofrimento – sobretudo nas crianças – recordei o apelo, sob a forma de poema, de Vinicius de Moraes – Rosa de Hiroxima.
"Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexactas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas oh não se esqueçam
Da Rosa de Hiroxima
A rosa hereditária
A rosa radioactiva
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atómica
Sem cor sem perfume
Sem Rosa sem nada"
Diante da televisão, pensei que não podia existir momento mais oportuno para falarmos de direitos humanos. E, no entanto, as imagens que passavam incessantemente, em directo e a horas marcadas, interrompiam as minhas palavras, buliam com a minha sensibilidade e o pó que se levantava em Bagdad sufocava os meus pensamentos.
Lembrei-me das palavras tão pertinentes agora, como o eram então, dessa grande referência que foi Helmut Schmidt, ex-chanceler da Alemanha. Afirmava nos idos anos 90 do século que há pouco terminou: "(…) As nações, Estados e seus governos, implicados na globalização económica têm de se unir em torno de um código ético mínimo; caso contrário – dizia Helmut Schmidt – o próximo século poderá decorrer de forma tão conflituosa como este que agora se aproxima do seu final." E avisava: " (…) Mas desta vez os conflitos não ficarão limitados a partes de continentes, antes poderá surgir, de facto, um conflito a nível mundial entre diferentes convicções de base, no qual as partes em conflito se apoiarão em interpretações religiosas e culturais convencionais. Quem quiser evitar o ameaçador choque de culturas, de facto, não precisa apenas de potencial económico e militar; quem o quiser fazer precisará antes de uma moral que possa ser reconhecida por todos os outros."
Essa "nova moral", que para alguns deve ser entendida como uma "religião laica" por todos reconhecida e aceite, foi e tem vindo a ser positivada e expressa em textos legais fundamentais que consagram os direitos dos seres humanos que, aceites pela grande maioria das democracias representativas deste mundo, fundamentam e presidem à ordem jurídica no seu todo, adquirindo um valor jurídico superior às regras legais nacionais.
É uma viagem extraordinariamente fascinante a que fazemos para encontrarmos as raízes, os fundamentos dos Direitos Humanos. Elas mergulham – sobretudo nos seus aspectos filosóficos e políticos – na antiga Grécia, onde filósofos como Sócrates, Platão e Aristóteles, entre outros começaram por reflectir sobre a organização da polis grega. Basta reler Platão, Séneca ou Cícero para perceber que das ideias e reflexões destes homens – ainda hoje referências inapagáveis – resultou a construção das teorias e princípios, direitos e deveres que não só inspiraram as leis que regiam a cidade ateniense como persistiram como fundamento da luta ao longo dos tempos pela dignidade do ser humano, pelas suas liberdades fundamentais e pela Democracia.
Pensar, em cada época e a cada instante, a história da humanidade é indispensável para melhor saber os caminhos a seguir, as atitudes a tomar, as normas a balizar os comportamentos dos cidadãos, os princípios a estabelecer e a fazer respeitar para que eles – todos eles – possam viver com a dignidade a que tem direito todo o ser humano.
É assim que, lançadas as sementes pela nossa tradição greco-judaico-cristã que alimentaram toda uma persistente luta de séculos, surgem as Declarações dos Direitos Humanos. Mais tímidas ou imperfeitas no princípio, mais claras, justas e precisas hoje!
Não querendo traçar aqui uma cronologia pormenorizada da história dos direitos humanos julgo, no entanto, ser importante referir os instrumentos jurídicos mais relevantes até à aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 10 de Dezembro de 1948.
Podemos dizer que, no início do século XIII, a "Magna Carta" foi a primeira declaração de direitos, definindo as bases de uma monarquia controlada e onde já então se afirmava no seu artigo 40: " A ninguém venderemos, a ninguém recusaremos ou dilataremos direito ou justiça".
Fundava-se, assim, a longa e conhecida tradição democrática inglesa, cujos princípios se sedimentaram. A Justiça e o Direito conheceram nova vitória em 1679 com a aprovação do "Habeas Corpus Act".
A "Bill of Rights" de 1689, ainda em Inglaterra, saída da "gloriosa revolução" no ano precedente, foi o passo seguinte na afirmação dos direitos do indivíduo perante o Estado, exigindo a subordinação do Rei ao Parlamento.
A ideia do sentido de dignidade do ser humano e da liberdade individual, sobretudo face ao poder político, foi ganhando cada vez mais espaço no coração e na cabeça dos homens que vieram a elaborar em 1789 a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Aí se proclamam direitos essenciais, cuja universalidade e inalienabilidade era pela primeira vez afirmada. Este foi sem dúvida um grande passo no caminho que a humanidade percorreu.
No entanto, sabemos hoje que esse foi, em parte, um passo não totalmente correcto. Foi uma ironia trágica o facto de a Revolução que instituiu e proclamou a Igualdade, Liberdade e a Fraternidade inspirar uma declaração que admitia a desigualdade, negava a relação fraterna e coartava a liberdade das mulheres que deveriam ser parceiras do homem em tudo.
Olympe de Gouges, que redigiu em 1791 a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, foi morta – como aliás sucedeu a Manon Roland – porque os homens acharam que as suas ideias contrariavam os princípios revolucionários. É incrível pensar que são os homens que pregavam a Igualdade, a Liberdade e a Fraternidade que as vão negar, agredindo uma parte da humanidade – as mulheres!
Mas a história faz-se com sacrifícios! E muitos – homens e mulheres – deram a sua vida pela conquista de direitos que a todos nós dizem respeito.
Foram necessárias duas grandes guerras para que o Homem percebesse a urgência, a premência da consagração de uma carta de direitos fundamentais, verdadeiramente universal.
A IIª Guerra Mundial foi, com efeito, o cenário de crimes hediondos que jamais a humanidade tinha cometido. O sofrimento de milhões de seres humanos atingiu níveis impensáveis tornando o século XX, como afirma Eric Hobsbawm, o "século mais assassino de todos os tempos".
Em 1948 é aprovada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, uma exigência que se impôs à consciência dos responsáveis políticos daquele período. René Cassin, um dos principais autores do texto da Declaração afirmava: "a ciência dos Direitos do Homem (…) tem por objecto estudar as relações entre os homens em função da dignidade humana, determinando os direitos e as faculdades que, no seu conjunto, são necessários para o desenvolvimento da personalidade de cada ser humano".
Foi com base nestes pressupostos que se proclamaram, ao longo dos trinta artigos que compõem a Declaração Universal, os direitos fundamentais de todo o ser humano, considerados "universais e inalienáveis", "fundamento da liberdade, da justiça e da Paz no mundo".
Aí se consagraram os chamados direitos da liberdade – direitos civis e políticos ("direitos individuais") – , mas também os chamados direitos de segunda geração – os direitos sociais, económicos e culturais – que promovem o bem-estar e a justiça social, para que a todos seja garantida a possibilidade de ter uma vida digna e segura, nesta grande família que é a Humanidade.
Este documento, cujo cinquentenário ainda há bem pouco celebrámos, foi o motor para um inúmero conjunto de Convenções, regionais ou universais, que foram sendo aceites por todos os países democráticos. Foi ele uma alavanca muito forte para a aceitação da Declaração Universal dos Direitos da Criança em 1959, reconhecendo à criança o estatuto de sujeito de Direito, com direitos específicos, cujo desenvolvimento integral urgia garantir, tal a fragilidade da posição em que se encontram, tantas vezes atropeladas e exploradas, das mais diversas formas, por todo o planeta.
Nunca o mundo em que vivemos se apresentou aos nossos olhos – aos mais velhos como eu, sobretudo – com um décor tão rico no que respeita a documentos e preceitos legislativos, a Declarações e Convenções que afirmam os direitos humanos e exigem a sua defesa.
Eles são multilaterais, bilaterais ou mesmo regionais (como o que o Brasil celebrou em 1997 com os outros Estados americanos, conhecido como a Declaração de Washington, antecedendo a definição dos vários planos de direitos humanos – nacionais, estaduais e municipais).
Porém, por detrás deste fascinante décor a realidade apresenta-se muito perturbada, fragilizada e preocupante, exigindo de nós uma reflexão atenta, constante e profunda e, sobretudo, uma acção que faça cumprir o que está contido nos documentos, tornando-os de meras declarações de intenção em acutilantes, exigentes e verdadeiros instrumentos de transformação da sociedade.
Não quero ser catastrofista, mas não posso deixar de traçar aqui um breve panorama do mundo de hoje, tão apertado, direi mesmo sufocado pela globalização meramente económica, onde os mercados dominam a sociedade e a política e as oportunidades e recompensas da globalização – que são muitas! – difundem-se de forma desigual e não equitativa, concentrando a riqueza nas mãos de poucos, deixando à maioria das populações a pena pesada da miséria, da fome e a ausência de expectativas de mobilidade social.
Não posso deixar de lembrar aqui o que Ricardo Petrella nos diz no seu tão interessante livro "O bem comum – Elogio da Solidariedade" – hoje assistimos à substituição de Deus misericordioso, judaico-cristão, pelo deus-mercado e vemos também a substituição dos Mandamentos da civilização cristã pelas novas Tábuas da Lei com os seus seis mandamentos (mundialização, inovação tecnológica, liberalização, desregulamento, privatização, competitividade).
Em várias partes do mundo – e especialmente no martirizado continente africano – fazem-se negócios fabulosos com a venda de armas. Incoerentemente são os que as vendem que, depois, vão dar a ajuda humanitária àqueles que ajudaram a estropiar, condenando-os à fome e ao sofrimento.
Os desequilíbrios sociais (sobretudo entre o Norte e o Sul, o Ocidente e o Oriente) decorrentes quer do império do mercado e, paradoxalmente, também do império dos Estados não democráticos (absorvendo os governos a maioria da riqueza que não chega a ser redistribuída pela população que a ajudou a criar), permitem que nos vejamos hoje a braços com um panorama desolador.
Com base nos relatórios do PNUD e no Relatório de Dados e Objectivos do Milénio publicado pelas Nações Unidas (publicado em 2002), sabemos hoje números revoltantes que nos dão conta dos índices de pobreza e analfabetismo, de violência que atinge grande parte dos seres humanos – sobretudo nos continentes africano e asiático – que o artigo 1º da DUDH diz "serem livres e iguais em dignidade e direitos" e cuja "vida, liberdade e segurança pessoal" está prevista no artº 3º da mesma Declaração.
* 40 000 crianças morrem por dia de fome e de doenças comuns, para as quais a cura às vezes obter-se-ia apenas com uma vacina.
* 150 milhões de pessoas vivem com saúde precária, mal nutridas e com crescimento deficiente. A subnutrição contribui para 50% da mortalidade infantil.
* 100 milhões (entre os 6 e os 11 anos) não frequentam a escola.
* As doenças infecto-contagiosas, e em particular a Aids (Sida) constitui a principal causa de morte na África sub-sahariana e a 4ª a nível mundial. Os "orfãos da aids" aumentaram, em média, 30 pontos percentuais de 1994 a 2000.
* Em 2000 2,4 milhões de pessoas, 80% das quais na Ásia, não tinha acesso a condições sanitárias.
* Por fim, e não sendo exaustiva na enumeração dos dados, mesmo nos países industrializados 7 a 17% da população vive abaixo da linha de pobreza.
As guerras continuam ceifando milhares e milhares de vidas humanas – a maior parte delas inocentes.
Perante este cenário, onde está, pois, meus amigos, a aplicação dos Direitos proclamados nas Declarações?
Onde ficou o compromisso, por países e instituições internacionais, assumido com a assinatura e a ratificação das várias Convenções?
Norberto Bobbio, jurista e politólogo por todos conhecidos, afirma: "o problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é o de justificá-los, mas o de protegê-los."
Mais do que as declarações, as Convenções têm um carácter de obrigatoriedade, exigindo uma decisão activa dos Estados que as ratificam.
Não podemos deixar que os direitos humanos não passem de meros princípios programáticos!
Muitos países estão, hoje, empenhados em tornar efectivas as palavras tantas vezes vãs das declarações de princípios.
O Brasil, sei, tem feito um longo e persistente caminho neste sentido, pese embora os inúmeros problemas que os indicadores nacionais do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e internacionais (ONU) indiquem. É verdade que muitos destes problemas passam por um crescimento económico e desenvolvimento sustentados e sustentáveis.
Pela experiência portuguesa na União Europeia, posso dizer-vos que os espaços de integração económica são um motor potente no sentido do progresso social. A Europa, que começou por ser apenas um espaço de integração económica, vê hoje aumentada a inter-ajuda, o apoio ao desenvolvimento e uma integração social em franca expansão, que permitiu que, bem há pouco, fosse aprovada uma Carta dos Direitos Fundamentais, reforçando uma cidadania europeia que nos aproxima a todos, vizinhos interdependentes, respeitando as identidades nacionais.
O empenho do Brasil no aprofundamento do Mercosul e numa possível ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), pode bem representar um passo gigante no crescimento económico, com as consequentes repercurssões no desenvolvimento social, cultural e político, junto de seus vizinhos e parceiros latino-americanos, muitos tão comprometidos no seu crescimento e mergulhados em crises económicas e sociais desesperantes.
Ainda assim, sabemos que é preciso, evidentemente, que o mundo da globalização em que hoje vivemos seja um mundo não apenas de mercados e de lucros, mas um mundo de pessoas – da globalização da cultura, dos valores e sobretudo da solidariedade.
O grande político e pacifista, Mahatma Gandhi, referência cívica e moral para todos nós, enumerando os "sete pecados sociais" põe logo na primeira linha "politics without principles" e "commerce without morality" – "política sem princípios e comércio sem moralidade".
Dispondo de todos os instrumentos jurídicos necessários e, embora se verifiquem melhorias, a miséria e a ignorância proliferam e têm a maioria das vezes um rosto de criança, o nosso futuro, e de mulher, ainda discriminada no acesso à educação e à plena participação política.
Pergunto-me: que fazer?!
Tenho para mim que, hoje, mais do que falar em direitos temos de pensar nos deveres.
As instituições a que presido – a Cruz Vermelha Portuguesa, a Fundação Pró Dignitate e a Fundação Aristides de Sousa Mendes – têm como inspiração o Direito Humanitário, sobretudo a C.V.. A sua acção, dentro e fora das fronteiras nacionais, no sentido da protecção das camadas mais vulneráveis, desenvolvida sempre de uma forma pacífica, conta com inúmeros voluntários.
Onde haja um grito de socorro, dentro ou fora de cada país, onde haja populações carenciadas, onde haja vítimas de conflitos ou de catástrofes, as ONG”S acodem, movidas por forte impulso de solidariedade.
As ONG”S contribuem, hoje, para a maior parte do auxílio às populações.
De cariz religioso ou laico, desempenham um papel subsidiário ao do Estado, colmatando as insuficiências da actuação deste último, e constituem um exemplo e um local de aprendizagem de solidariedade e abnegação sobretudo para os mais novos, que em grande e cada vez maior número as integram em regime de voluntariado. Jovens e adultos que militam nestas organizações, abdicam generosamente do seu tempo, para que o tempo de outros seja mais feliz e equilibrado.
Devem, pois, ser apoiadas e acarinhadas. O papel do sector privado no apoio a estas instituições, muitas vezes facilitado pelo Estado mediante a concessão de benefícios fiscais, deve por todos nós ser incentivado. Empresários e gestores podem também aqui contribuir, financiando as acções tão nobres e indispensáveis destas Instituições (dar conta de algumas acções desencadeadas em várias partes do mundo).
Hoje, perante o estado do mundo pergunto-me:
Que horizontes estamos nós rasgando para os mais novos? Que mensagens queremos transmitir-lhes? Que sociedade é aquela que estamos preparando para o futuro e que valores lhes incutimos com esta nossa actuação?
A Educação oferece-se-nos como o caminho, longo embora mas eficaz e seguro, para a construção de uma sociedade de tolerância e de paz.
A Educação e a formação, pelas quais somos responsáveis e das quais não nos podemos demitir, têm de merecer da nossa parte um cuidado e atenção enormes. É através delas que modificamos as mentalidades, que hoje são deformadas pelo individualismo, pelo cepticismo, pelo cada um por si, pela falta de relação com o outro, de diálogo, de consciência que deve ter-se de pertença à mesma comunidade social, à mesma família que é a Humanidade.
A Educação adquire o seu pleno significado, como nos diz Anita Novinsky "como educação para a auto-reflexão crítica". E acrescenta, "só uma tomada de consciência da História e um tratamento crítico da razão de Estado poderá evitar que no terceiro milénio, a xenofobia racista e a sua expressão máxima, o anti-semitismo se repitam. Manter a diversidade cultural exige um esforço conjunto para garantir as reconquistadas liberdades".
Na Família e na Escola, devemos ter a preocupação com a construção de esquemas mentais que levem ao reconhecimento do outro, à relação de afecto, de tolerância, de amor, que devem existir entre todos os seres humanos.
Diz Jacques-André Tschoumy que "ensinar os Direitos Humanos na escola é privilegiar a noção de dignidade humana em todos os campos da vida quotidiana".
A escola não pode ser mais um local de mera transmissão de conhecimentos técnicos, unidimensional, com os "curricula" limitados às matérias de exame.
Hoje a escola é um espaço pluridimensional, que deve completar os programas com actividades culturais, artísticas, desportivas e cívicas. Mas sobretudo revelar e estimular a prática dos grandes valores humanos.
Não resisto a ler-vos uma carta de um jovem que sobreviveu ao campo de concentração e que acho altamente impressiva!
"Caro Professor
Desconfio da Educação.
Sou sobrevivente de um campo de concentração.
Os meus olhos viram o que jamais olhos humanos deveriam poder ver:
– Câmaras de gás construídas por engenheiros doutorados;
– Adolescentes envenenados por físicos eruditos.
– Crianças assassinadas por enfermeiras diplomadas.
– Mulheres e bebés queimados por bacharéis e licenciados.
Por isso desconfio da educação.
Eis o meu apelo:
Ajudem os vossos alunos a serem humanos.
Que os vossos esforços nunca possam produzir monstros instruídos, psicopatas competentes, Eichmans educados.
A leitura, a escrita, a aritmética, só são importantes se tornarem as nossas crianças mais humanas."
Assim, e desde cedo, tem de dar-se a conhecer o rol dos direitos e o seu profundo significado. Ensinar e instituir uma cultura cívica, sem a qual conhecimento algum de qualquer matéria, poderá dar frutos no futuro dos jovens.
Uma das formas pode ser fazer que as crianças descubram e vivam a prática do voluntariado social. Por essa via, as crianças e os jovens, uma vez estimulados a utilizá-la, enriquecem-se, aprendendo o significado profundo da palavra solidariedade. Quando a escola dá à criança e ao jovem a possibilidade de se interessar por projectos de cariz social e neles participar, estimula de forma decisiva o exercício dos valores cívicos de cidadania.
O contacto dos jovens com o sofrimento humano fá-los aperceberem-se de que o mundo em que vivem é desigual, injusto e violento e que os valores humanos são fundamentais para o modificar e torná-lo melhor. Fazê-los reflectir, conhecer as instituições que militam em favor dos direitos humanos, suscitar interesse e empatia pelas vítimas de toda a sorte de flagelos, ajuda as crianças a descobrirem na face do outro a sua própria face, percebendo a extensão dos direitos e dos deveres de todos e a importância enorme que pode ter a sua acção individual no conjunto da vida da comunidade.
Aqui no Brasil, por exemplo, vemos os meninos do Rio e de Sampa, jovens famintos de alimento e de afecto, entregues a si mesmos, nas favelas, nos morros e nas avenidas, tantas vezes "empurrados" para o crime, por falta de alternativas. Mas também podemos ver como os resultados de programas de integração social desses meninos vão dando seus frutos.
Numa cidade onde o crime se apresenta aos mais jovens como uma "alternativa de sucesso" e sem esforço, comparado com a vida de todos os que trabalham arduamente para o progresso, a Educação para a assumpção da cidadania tem de ser privilegiada na Escola, na Família, por pais e professores.
Se queremos que as gerações futuras vivam na fraternidade e no amor, não podemos continuar a dar-lhes exemplos de ódio e de violência. Para que as armas se calem (!!!), é preciso dar exemplos vivos de tolerância! Lembremo-nos que não há melhor pedagogia que a do amor!
Neste momento tão difícil da humanidade, é imperioso propagar mensagens de paz, rasgando os horizontes de esperança que mostrem que "o justo caminho para um mundo melhor" existe e está, em parte, nas nossas mãos.
Se queremos um mundo de tolerância e de Paz, temos de respeitarmo-nos, de reconhecermo-nos recíprocos direitos, de aprender que a resolução pacífica dos conflitos é a única compatível com o respeito dos Direitos Humanos, ou que, pelo menos, como afirmam os princípios de direito internacional, devem ver-se exaustos, esgotados todos os caminhos pacíficos para a resolução desses problemas.
Jean-Marie Muller, falando sobre Gandhi afirmou : « Chegou o momento de afirmar claramente que a violência não é um direito do homem mas um crime contra a humanidade".
Julgo podermos hoje afirmar um novo direito do homem, sem o qual de nada servem os princípios e os direitos atrás mencionados. Esse é o "direito do ser humano à Paz", como referiu Federico Mayor, ex-Secretário-Geral da Unesco.
Sua Santidade, o Papa João Paulo II, grande defensor dos direitos humanos e incansável propagador da mensagem cristã da paz, na sua espantosa e permanente peregrinação pelo mundo, afirmou: "Não há Paz sem justiça, não há justiça sem perdão. (…) Possa a família humana, nestes tempos tormentosos, encontrar paz verdadeira e duradoura, aquela paz que só pode nascer do encontro da justiça com a misericórdia!" É este o meu desejo também!
Todos somos necessários na construção desse edifício, meus amigos.
Neste país tão plural como é o Brasil, misto de raças, de credos, de cores e seus matizes, o confronto com a diferença é um exemplo para a aprendizagem do convívio social pacífico.
Nós, portugueses e brasileiros, podemos e devemos dar o nosso contributo, aprofundando as nossas experiências, enriquecendo-nos, portanto, reciprocamente.
Não vos esqueçais que temos já um fórum de debate – a Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP), onde munidos dessa "língua que em conjunto habitamos", para utilizar a lindíssima expressão de João Cabral de Melo Neto, poderemos actuar decisivamente na cooperação para o desenvolvimento económico, político, social e cultural de todas as nações que o compõem, algumas ainda não refeitas das recentes guerras.
Empenhando os nossos esforços na cooperação, na educação, no conhecimento mútuo, podemos propagar sementes de Paz por Angola, Guiné, Cabo-Verde, Moçambique, S.Tomé e Timor. Para que a CPLP, além de habitar a língua portuguesa que nos une, possa também contribuir para a construção de uma ponte sobre este Oceano Atlântico, que nos separa e deve unir, e para o desenvolvimento dessa outra língua, mais universal, que é a dos direitos humanos.
Muito obrigada!