SÃO PAULO – Tal qual ocorreu durante a Rodada Uruguai do GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), os países em desenvolvimento, e particularmente aqueles que têm grandes mercados internos, estão a sofrer pressões da parte dos países desenvolvidos para a liberalização dos serviços legais.

Por detrás da retórica especiosa do livre comércio e da fraternidade das profissões legais, por parte dos países desenvolvidos, há em realidade um interesse predatório nos mercados dos países em desenvolvimento, enquanto aqueles mantém seus mercados fechados por barreiras horizontais diversas, como as existentes na área de imigração.

Sucede que o número de advogados em muitos países desenvolvidos, como nos Estados Unidos da América, no Reino Unido e na Suíça, já excedeu um quociente razoável necessário ao atendimento dos respectivos mercados internos. Nos EUA, já há mais de um milhão de advogados, enquanto na União Européia, o número situa-se por volta de 750 mil profissionais legais. Como conseqüência, os estrategistas desses países voltam-se para a “conquista de mercados”.

Na Rodada Doha da OMC (Organização Mundial do Comércio), as negociações sobre os serviços legais são conduzidas no âmbito do GATS (Acordo Geral de Comércio em Serviços). Em julho do ano passado, em Genebra, criou-se um grupo denominado “amigos dos serviços legais”, para debater um quadro de negociações e propostas diversas. Fazem parte do grupo 14 membros da OMC: o Brasil, os EUA, a União Européia, a China, a Austrália, o Japão, Taiwan, Hong Kong, a Malásia, a Tailândia, a Coréia, a Nova Zelândia, e a Suíça.

Nos EUA, a regulamentação da profissão legal é de competência dos estados federados. Na União Européia, por sua vez, a regulamentação das profissões legais é de competência dos estados-membros. Todavia, as negociações comerciais são efetuadas pelo governo federal, no caso norte-americano, e pela Comissão Européia, no caso da UE.

Desde a assinatura do GATS, estados federados norte-americanos estão a inadimplir os compromissos dos EUA no âmbito multilateral. A Flórida, por exemplo, proíbe a escritórios estrangeiros a contratação de advogados locais.

Por sua vez, no caso da União Européia, os pedidos de liberalização são feitos pela Comissão Européia, mas as concessões são da alçada das ordens e colégios de advogados dos 25 países-membros, que até agora ainda sequer chegaram a um entendimento sobre a implementação das diretivas européias de regência sobre as profissões jurídicas.

Assim, as concessões feitas por cada um dos países europeus são sempre inferiores (em alguns casos, como o da França, em muito) aos pedidos ou demandas feitas aos seus parceiros comerciais.

Agrava-se o quadro europeu mais ainda com a perspectiva da profissão legal deixar de ser privativa de advogado na Inglaterra, conforme comentei em meu artigo “A reforma da advocacia inglesa face o direito internacional”. Uma liberalização face à União Européia colocará o advogado do país em desenvolvimento em direta competição com bancos, supermercados e companhias abertas, que provavelmente serão provedores de serviços legais na Inglaterra já em 2005.

A hipocrisia que prevalece nas negociações comerciais internacionais assegurou que os EUA e a União Européia (e também a Suíça, um dos mercados jurídicos mais protegidos do mundo) fizessem amplas propostas de liberalização do comércio internacional de serviços legais.

Na prática, no entanto, tais propostas representarão a abertura dos mercados dos terceiros países enquanto os mercados daqueles países continuam fechados aos profissionais de seus parceiros comerciais.

O ano de 2005 terá duas datas potencialmente cruciais para a questão dos serviços legais. Em maio, deverão ser apresentadas ofertas de liberalização do setor pelos estados-membros da OMC. Em dezembro, tomará lugar a reunião ministerial de Hong Kong. O Brasil, com mais de meio milhão de advogados, tem muito a perder com a presente formatação de liberalização de serviços legais proposta no âmbito da Rodada Doha.