O Brasil apresenta carga tributária crescente e demasiadamente alta, próxima a 40% do produto interno bruto (PIB). [1] Essa carga corresponde a praticamente o dobro da dos demais países em desenvolvimento – e.g., Argentina (21,1%) e México (18,3%) –, é muito superior à dos Estados Unidos (29,7%) e somente comparável à de países com infra-estrutura de serviços públicos extremamente desenvolvida, como Alemanha (36,4%), Suíça (34,5%) e Inglaterra (37,4%). [2]
O último mês de agosto não foi exceção; mais uma vez a arrecadação de tributos no Brasil alcançou recordes históricos. [3] O crescimento nominal foi de 31,21% em relação ao mesmo período do ano passado. [4] Essa majoração foi devida não somente ao melhor desempenho da economia brasileira e à mais efetiva fiscalização tributária, mas principalmente às novas regras adotadas no ano de 2003 e no início deste ano.
Entre as novas regras, constam as que instituíram a contribuição para o PIS e a Cofins sobre as importações a partir do último mês de maio, com alíquotas de, respectivamente, 3% e 7,6%, as quais provocam um ônus adicional, sobre essas operações, de cerca de 15% do valor aduaneiro. [5] A criação dessas contribuições, além de configurar um dos fatores que mais influenciaram o crescimento da carga tributária brasileira no ano de 2004, [6] infringiu a Constituição Federal e mostrou-se incompatível com importantes dispositivos de acordos internacionais assinados e internalizados pelo Brasil.
Neste estudo, em virtude de sua extensão, não serão examinados todos os problemas legais, constitucionais e internacionais relacionados às novas contribuições sobre a importação, mas somente dois dos mais relevantes: o problema relacionado à base de cálculo, que já foi, inclusive, examinada por magistrados brasileiros, e o relacionado ao Direito Internacional. O artigo 149, II, alínea “a”, in fine, da Constituição Federal brasileira determina que o valor aduaneiro constitui a base de cálculo das contribuições sob análise. O conceito de valor aduaneiro foi estabelecido em acordo internacional assinado pelo Brasil, artigo VII do GATT, e Acordo de Implementação do Artigo VII (Acordo de Valoração Aduaneira), internalizados por meio do Decreto nº 1.355/1994 e regulamentados pelo Decreto nº 4.543/2003.
O artigo 7º da Lei nº 10.865/2004, que institui a contribuição para o PIS e a Cofins sobre a importação, dispõe que a base de cálculo destas contribuições é o valor aduaneiro das mercadorias, assim entendido como a base de cálculo do imposto sobre a importação adicionada do valor do ICMS e do valor das próprias contribuições.
No entanto, o artigo 2º, II, do Decreto-lei nº 37/1966 determina que a base de cálculo do imposto sobre a importação é “o valor aduaneiro apurado segundo as normas do artigo VII do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT)”.
Dessa forma, fica evidente que o legislador infraconstitucional ultrapassou sua competência tributária, pois deu interpretação a expressões constantes do texto constitucional diversa da presumida nesse documento e da adotada amplamente em leis brasileiras e acordos internacionais, o que resultou em majoração arbitrária da base de cálculo e, conseqüentemente, dos valores cobrados a título de contribuições para o PIS/Pasep e Cofins.
Corroborando o entendimento praticamente unânime na doutrina e jurisprudência brasileiras de que o legislador está adstrito aos significados adotados explícita ou implicitamente pelo legislador constitucional, assim determina o artigo 110 do Código Tributário Nacional brasileiro:
“ A lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal, pelas Constituições dos Estados, ou pelas Leis Orgânicas do Distrito Federal ou dos Municípios, para definir ou limitar competências tributárias.”
No que concerne à base de cálculo, há mais uma incongruência: a Lei Complementar nº 87/1996, artigo 13, determina que sejam incluídos na base de cálculo do ICMS quaisquer outros impostos, taxas, contribuições e despesas aduaneiras, ao passo que, segundo a Lei nº 10.865/2004, deveria ser incluído o valor do ICMS na base de cálculo das contribuições.
Dessarte, o contribuinte vai se encontrar em situação que beira o paroxismo, pois, para calcular o ICMS, precisa conhecer o valor das contribuições, mas, para definir o montante das contribuições, necessita previamente saber o valor do ICMS incidente nas importações.
Essas inconstitucionalidades têm sido reconhecidas em numerosas decisões de juízes de diversos estados brasileiros, entre as quais citamos decisão da Justiça Federal em Florianópolis, em favor da Empresa 4 Music Comércio, Importação e Exportação Ltda.: [7]
“Por sua vez, para que se obtenha o valor das contribuições para o PIS-Importação e COFINS-Importação, mister que se tenha o valor do ICMS, que por sua vez, como se disse, é composto também do valor das contribuições referidas, dando início a uma operação aritmética cíclica, que, à margem da complexidade no seu entendimento, apresenta-se, aparentemente sem solução.
Não obstante tenham os Tribunais admitido a validade das chamadas bases de cálculo ‘por dentro’, para o caso demonstra-se a própria impossibilidade de apurar-se corretamente o valor do tributo, gerando-se incerteza incompatível com os princípios que orientam o direito tributário, mormente quanto à necessidade de permitir-se o planejamento e segurança do contribuinte.”
Quanto à questão do valor aduaneiro, a decisão mencionada também reconhece, de modo absoluto, a inconstitucionalidade da Lei nº 10.865/2004, nos seguintes termos:
“Assim, se a Constituição Federal, na limitação de competência tributária, utiliza-se de um elemento próprio do direito privado – in casu, o conceito de valor aduaneiro – cujo conteúdo é dado por acordo internacional já incorporado ao ordenamento jurídico nacional, certo que não está o legislador ordinário autorizado a ampliar o seu conceito a fim de impor nova exação ao contribuinte, porquanto flagrantemente inconstitucional a exigência. A se admitir tal possibilidade estar-se-ia permitindo que lei ordinária, na redefinição de um conceito próprio do direito privado, modificasse com isso a Constituição Federal, culminando por esvaziá-la por completo.”
Cabe anotar que, no processo em pauta, a medida liminar foi concedida contra o Delegado da Secretaria da Receita Federal de Florianópolis, em 24 de maio de 2004, afastando a incidência das contribuições na importação, e em 1o de setembro foi proferida sentença que concedeu a segurança com base nas mesmas razões. [8]
As novas contribuições incidentes na importação podem ser consideradas adicionais do imposto sobre a importação – tendo em vista que incidem sobre essa operação – ou tributos domésticos – por corresponderem aos tributos com a mesma denominação incidentes sobre as operações internas, sendo permitida, inclusive, no pagamento destes tributos, a dedução do valor pago na importação pelos contribuintes. Contudo, aceitando-se quaisquer das opções, permanecem incongruências com acordos internacionais.
Caso se entenda que as contribuições têm natureza jurídica de adicional do imposto sobre a importação, é de se ter em conta que elas resultam em considerável aumento da carga tributária sobre a importação. Dessarte, à medida que a alíquota das novas contribuições, somada às alíquotas do imposto sobre a importação, ultrapassa os limites estabelecidos na Tarifa Externa Comum (TEC), o Brasil infringe compromisso assumido no âmbito do Mercado Comum do Sul (Mercosul). [9]
Da mesma forma, sempre que as alíquotas das contribuições estabelecidas pela Lei nº 10.865/2004, acrescidas do imposto sobre a importação, alcançarem montantes superiores às tarifas consolidadas por ocasião da Rodada do Uruguai, estará o Brasil também descumprindo acordo no âmbito da Organização Mundial do Comércio.
Por outro lado, se fosse firmado entendimento de que a contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins sobre a importação não se caracterizariam como imposto sobre a importação, mas como tributo interno – semelhante às contribuições domésticas com a mesma denominação –, haveria outro problema: as contribuições sobre as operações internas não incidem sobre os bens nacionais mas as contribuições sobre a importação incidem somente sobre os bens importados. Ou seja, a contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins incidentes no âmbito interno têm como base de cálculo a receita bruta das empresas e não o valor de mercadorias ou serviços, ao passo que as novas contribuições com a mesma denominação incidem sobre bens e serviços importados.
Argumentar que as contribuições sobre a importação compensam as contribuições sobre as receitas corresponderia ao absurdo de justificar a criação de um “imposto sobre a renda” incidente sobre os bens importados, sob o argumento de que compensaria o imposto pago pelas empresas brasileiras em relação ao lucro apurado.
O artigo III do Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio (GATT), de 1994, dispõe que mercadorias nacionais e importadas devem ter o mesmo tratamento em relação a todos os tributos e outros ônus que afetem sua venda, oferta, compra, transporte, distribuição ou uso. Portanto, se as novas contribuições não forem consideradas tributos sobre a importação, o compromisso de tratamento nacional aos bens estrangeiros estará inexoravelmente violado.As análises desenvolvidas nos itens anteriores demonstram que a contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins incidentes sobre as operações de importação são inconstitucionais e violam acordos internacionais subscritos e internalizados pelo Brasil.
A Lei nº 10.865/2004 revela-se repleta de vícios, entre os quais o confrontamento com a determinação constante da Carta Magna de que a base de cálculo das novas contribuições seja o valor aduaneiro dos bens ou serviços importados. Além disso, a fórmula de apuração da base de cálculo prescinde de critérios exatos e inteligíveis pelo contribuinte, o que fere o princípio constitucional de segurança jurídica.
Da perspectiva do Direito Internacional, caracterizadas as contribuições como adicional do imposto sobre a importação, a Lei nº 10.865/2004 iria de encontro ao acordo firmado de tarifa zero para os bens comercializados entre os países do Mercosul e desrespeitaria a TEC e as tarifas consolidadas ao final da Rodada do Uruguai no GATT.
Contrario sensu, se a contribuição para o PIS/Pasep e a Cofins incidentes sobre as importações não forem consideradas tributos sobre a importação, mas impostos domésticos, feririam frontalmente o princípio do tratamento nacional a bens importados, vigente no âmbito da OMC.
Assim, o cidadão brasileiro se depara, mais uma vez, com um Estado extremamente ávido por receitas, ainda que com ameaça a princípios democráticos e à Carta Magna. Estado que não se intimida diante dos clamores de seu povo de que a carga tributária é excessiva e injusta nem das alegações de inconstitucionalidades e ilegalidades, pois, mesmo que os tributos estejam eivados dos maiores vícios, existe a certeza de que somente um pequeno percentual dos contribuintes, aqueles em condições econômicas de procurar assessoria jurídica, terá seus direitos preservados e deixará de pagar. Aos demais, restaria apenas conformar-se.