1.1. Tsze-kung aproximou-se do mestre e formulou a seguinte pergunta: “Há uma só palavra que poderia servir de regra de conduta para toda uma vida?” E o mestre replicou “E não seria reciprocidade tal palavra?” [1] No universo jurídico, a reciprocidade, generalizada por toda a sociedade, é traduzida pela isonomia, princípio pelo qual todos são iguais perante a lei, fundamento básico do Estado de Direito. Na esfera internacional, a prevalência da eqüidade e da lei nas relações entre estados, e bem assim entre as partes privadas, é hoje a principal prioridade a ser levada em consideração em negociações comerciais.
1.2. Todavia, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio – Gatt, assinado originalmente em 1947 por 23 países, entre os quais o Brasil, estabeleceu nos seus princípios básicos a Cláusula da Nação Mais Favorecida – MFN, que nada mais é do que a automaticidade da generalização a todos parceiros comerciais de uma concessão feita a um deles. A cláusula MFN é incompatível com o conceito da reciprocidade nas relações comerciais internacionais, mas ao menos teve o mérito de estabelecer o patamar mínimo sobre o qual se podem assentar os alicerces da construção do grande edifício da juridicidade no comércio mundial. Durante a Rodada Uruguai do Gatt, encerrada em 1994, e que resultou na criação da Organização Mundial do Comércio em 1995, uma das maiores reivindicações dos países em desenvolvimento, entre os quais o brasil, foi o aperfeiçoamento da estrutura jurídica das relações comerciais internacionais, de tal forma a se limitar o arbítrio e o exercício das próprias razões.
1.3. O Gatt, em seu artigo 24, permite exceções ao princípio da cláusula MFN no tocante a zonas de livre comércio e mercados comuns, desde que tais exceções representem não um obstáculo à liberalização comercial, mas uma fase intermediária neste propósito. Para os estados em geral, todavia, a cláusula MFN e o sistema multilateral representam uma âncora e uma garantia de tratamento dentro do ordenamento jurídico internacional. Iniciativas regionais, se não fundadas na ordem jurídica equitativa, podem subverter as relações e resultar na subordinação de um estado a outro. Destes conceitos básicos decorrem a importância fundamental do Direito do Comércio Internacional nos dias de hoje para o diagnóstico de situações presentes concretas; para informar decisões específicas, bem como para orientar na busca da eqüidade nas relações comerciais entre estados soberanos.
1.4. Isto posto, dividi a apresentação de hoje nos seguintes tópicos:
1.4.1. Esta introdução;
1.4.2. O histórico da Alca;
1.4.3. A situação presente das negociações da Alca: divergências e agendas;
1.4.4. Obstáculos legislativos nos EUA;
1.4.5. Conclusão, dentro da perspectiva brasileira.
2.1. Na Cúpula das Américas realizada em Miami, EUA, em dezembro de 1994, presidentes e primeiros ministros de 34 países da América do Sul, Central, do Norte e Caribe concordaram em iniciar um processo de negociações para o início de conversações visando a criação de uma Área de Livre Comércio das Américas até o ano 2005. Esta iniciativa foi originada no governo dos Estados Unidos, após a negociação bem-sucedida do Acordo de Livre Comércio da América do Norte – Nafta e dentro da tendência da diplomacia comercial norte-americana de privilegiar negociações regionais em detrimento das multilaterais. Outras iniciativas norte-americanas buscam a criação de uma área de livre comércio com a África, no ano 2010, e uma no Pacífico para os anos 2010/2020, objeto do Fórum de Cooperação Econômica Ásia-Pacífico – Apec.[2]
2.2 . Na ocasião, os líderes continentais adotaram um plano de ação formatado em um processo dicotômico. De um lado, se procuraria expandir e aprofundar as normas dos pactos regionais já existentes, bem como aumentar as relações entre eles. De outro, se buscaria estabelecer normas continentais na área de livre comércio. Posteriormente, durante a reunião ministerial realizada em Denver, EUA, em junho de 1995, decidiu-se que quatro conceitos básicos orientariam as negociações e a eventual criação da Alca:
2.2.1. Os dispositivos da Alca devem ser plenamente consistentes com as normas da OMC;
2.2.2. A Alca deverá satisfazer os requisitos de regionalismo aberto e não deverá servir como instrumento de protecionismo contra terceiros países;
2.2.3. A Alca deverá ter grande abrangência, compreendendo desde assuntos tradicionais do comércio, as chamadas áreas novas, como também assuntos não relacionados com o comércio. Entre os primeiros conta-se acesso a mercados, subsídios, anti-dumping; medidas compensatórias, padrões sanitários e fito-sanitários; padrões técnicos e resolução de disputas. As chamadas áreas novas também estão incluídas, como serviços, investimentos e compras governamentais. Dentre os não relacionados com comércio, contam-se propriedade intelectual, Direito de Competição, legislação trabalhista e ambiental;
2.2.4. Os requisitos de adesão, à semelhança daquilo que se fez com os Tratados de Marraqueche, ao final da Rodada Uruguai, deverão exigir concordância com a totalidade do pacote de acordos.
2.3. Foram criados, a partir da reunião de Denver, sete grupos de trabalho com o objetivo de levantar a situação legislativa nos 34 países a respeito de setores específicos, bem como de formular sugestões para as futuras negociações nas respectivas áreas. Estes grupos são os seguintes:
2.3.1. Acesso a mercados;
2.3.2. Procedimentos alfandegários e regras de origem;
2.3.3. Investimentos;
2.3.4. Padrões e barreiras técnicas ao comércio;
2.3.5. Medidas sanitárias e fito-sanitárias;
2.3.6. Subsídios, antidumping e medidas compensatórias; e
2.3.7. Menores economias.
2.4. Posteriormente, como conseqüência da reunião ministerial de Cartagena, que ocorreu em março de 1996, criaram-se grupos adicionais para:
2.4.1. Serviços;
2.4.2. Compras governamentais;
2.4.3. Propriedade intelectual; e
2.4.4. Direito de Competição.
2.5. Foi ainda criado um grupo tripartite de organizações hemisféricas para dar apoio técnico aos grupos de trabalho. As entidades envolvidas são a Organização dos Estados Americanos – OEA; a Comissão Econômica das Nações Unidas para a América Latina – Cepal; e Banco Inter-Americano de Desenvolvimento – BID.3.1. Na reunião de vice-ministros que tomou lugar em Florianópolis, SC, Brasil, em setembro de 1996, aprofundaram-se os entendimentos sobre como formatar a fase de negociações visando a criação da Alca. Os EUA apresentaram sua proposta para o início de negociações a partir de 1998, negociando desde o início dessa primeira fase os assuntos pertinentes a acesso a mercados, investimentos, compras governamentais, normas técnicas, medidas sanitárias e fito-sanitárias, procedimentos aduaneiros e propriedade intelectual. Na segunda fase, a tomar lugar a partir do ano 2000 se negociariam questões atinentes a subsídios, direitos antidumping, medidas compensatórias, Direito de Competição e solução de controvérsias. A primeira fase compreende os objetivos norte-americanos de resultados rápidos ou early harvest (colheita precoce).
3.2. A proposta brasileira, [3] apresentada pelo ministro das Relações Exteriores na abertura da reunião vice-ministerial do Recife, PE, havida em fevereiro de 1997, contempla uma negociação gradual e progressiva em três etapas. A primeira, de 1998 a 1999, compreenderia os temas de facilitação de negócios. A segunda, de 2000 a 2002, visaria tratar de normas e disciplinas e compreenderia, entre outras, as áreas de eliminação de subsídios agrícolas, compras governamentais, solução de controvérsias, procedimentos aduaneiros, investimentos, propriedade intelectual etc. A terceira fase trataria de acesso a mercados nas áreas de mercadorias e serviços.
3.3. Por sua vez, o Canadá apresentou uma proposta para uma negociação global para toda a agenda dos temas de Miami dentro do período de 1998 a 2003.
3.4. A polarização das posições do Brasil e dos EUA pode ser bem avaliada, sem a cortina de fumaça ocasionalmente presente na diplomacia, pela percepção das respectivas posições a partir dos setores privados de cada um dos países. Segundo um estudo publicado pelo Centro Norte-Sul da Universidade de Miami, [4] o Brasil deseja adiar as negociações até que possa neutralizar algumas das vantagens do Nafta, por meio de 1) uma maior integração no Mercosul; 2) da criação de uma área de livre comércio da América do Sul; e 3) do desenvolvimento de relações com a União Européia que sirvam de contrapeso aos EUA. Segundo uma perspectiva diversa, de acordo com análise publicada na imprensa brasileira [5], na agenda afirmativa dos norte americanos para a Alca estaria: I) a abertura dos mercados de serviços dos demais países; II) o acesso ao mercado de mercadorias com tarifas mais baixas; III) a manutenção de regras de origem que dificultem o acesso de terceiros países; IV) a imposição de critérios legislativos e culturais próprios, com expressiva renúncia à soberania por parte dos outros membros; e V) uma colheita precoce de todos os benefícios anteriores. Na agenda defensiva dos EUA constaria, ainda segundo a mesma análise; i) a manutenção do regime fechado de serviços com barreiras horizontais; ii) manutenção do regime de subsídios agrícolas; iii) manutenção da estrutura legislativa unilateral acima dos tratados internacionais; e iiii) só fazer concessões dilatadas no futuro.4.1. Nos EUA prevalece uma longa tradição de isolacionismo político e unilateralismo comercial. Essas características fincaram raízes profundas no ordenamento legal norte-americano e hoje representam um formidável obstáculo à criação da Alca formatada dentro de uma juridicidade aceitável. Em primeiro lugar, o Direito Constitucional norte-americano apresenta características muito particulares na área de tratados internacionais, ao diferenciar os tratados propriamente ditos dos acordos executivos. Um segundo nível de distinção está na determinação de se os acordos executivos são auto-executáveis ou não. Para evitar que o Congresso norte-americano possa retalhar um tratado internacional previamente negociado pelo Poder Executivo, é de fundamental importância que haja uma autorização prévia, também chamada de fast-track e que o acordo seja auto-executável.
4.1.1. Mas os problemas não terminam aí. Ao contrário da situação vigente nos países da América Latina e da Europa, nos EUA os tratados internacionais estão situados ao mesmo nível, e ocasionalmente abaixo, das leis federais na hierarquia das normas, o que permite que dispositivos de tratados internacionais sejam revogados internamente por meio de legislação federal ordinária. Esta situação é agravada pelo fato de que os EUA não são signatários da Convenção de Viena sobre a Leis dos Tratados de 23 de maio de 1969, que dispõe que um estado não pode invocar sua legislação ordinária interna para não cumprir suas obrigações derivadas de um tratado internacional [6]. Desta maneira, nas palavras de um dos maiores especialistas estadunidenses em Direito Internacional, “a possibilidade existe de que as cortes dos Estados Unidos possam chegar à decisão contrária ao Direito Internacional, e que tal decisão possa causar violação por parte dos EUA em suas obrigações internacionais.” [7]
4.2. O fato é que tais idiossincrasias atingem um nível absolutamente intolerável quando a legislação interna de adoção de tratados internacionais nos EUA, mesmo aqueles que devem ser aceitos ou recusados em bloco, ressalvam que não terão vigência se contraditórios com a legislação interna. A legislação ordinária norte-americana que tratou da adoção dos tratados da Rodada Uruguai estabeleceu, na seção 102 (a) que “não deverá ter efeito nenhum dispositivo de quaisquer acordos da Rodada Uruguai, nem aplicações de qualquer de seus dispositivos, a qualquer pessoa ou circunstância, que seja incompatível com a lei dos EUA” [8]. Mais abaixo, a mesma lei expressamente exclui qualquer revogação da infame seção 301 da Lei de Comércio de 1974 que, por dar sustentação ao regime unilateral norte-americano, é notoriamente ilegal face ao Direito Internacional, inclusive em violação aos artigos 1 e 2 do Gatt 1947. A própria situação perante o Nafta é idêntica. [9] Conseqüentemente, o Nafta não é necessariamente exeqüível nos EUA, mas certamente o é nos territórios dos outros estados signatários.
4.2.1. Desta forma, tecnicamente, os EUA estão em violação fundamental aos tratados da Rodada Uruguai como com o tratado do Nafta, já que ambos exigem aceitação global, um dos requisitos, por sinal, exigidos para as negociações da Alca, conforme já referido anteriormente.[10]
4.3. Neste ponto, vale a pena discorrer em maiores detalhes sobre a seção 301, que autoriza o escritório do representante comercial dos EUA (USTR) a investigar e sancionar práticas comerciais consideradas “desleais” aos interesses norte-americanos. Essas sanções, tanto de caráter tarifário ou não, são estabelecidas de forma a restringir as importações dos países que de forma “injustificável” ou “não-razoável” restringirem as exportações dos EUA. Em 1988 [11], a lei foi emendada para criar três novas categorias: a Super 301; a Special 301; e a 301 de Telecomunicações. A Super 301 requer que o USTR prepare uma lista negra de países de práticas “não-razoáveis”; um cronograma para sua eliminação e um programa de sanções a serem aplicadas. A Special 301 é bastante semelhante e aplica-se à área de propriedade intelectual e a 301 de telecomunicações visa abrir mercados “fechados”.
4.4. Entre as sanções disponíveis na seção 301, está a possibilidade de suspensão, retirada ou não da aplicabilidade de benefícios conferidos por acordos multilaterais ou regionais, como o Nafta, OMC ou Alca, se esse um dia vier a ser assinado.
4.5. Durante a Rodada Uruguai do Gatt, medidas tomadas sob o amparo da seção 301 pelos EUA eram freqüentemente justificadas com o argumento de que o sistema multilateral não tinha um mecanismo eficaz de resolução de disputas. Este argumento foi utilizado para fins de propaganda mesmo sendo os EUA o país líder em não aceitação de laudos arbitrais adversos no Gatt [12]. Esta posição também motivou iniciativas norte-americanas de melhoria da soluçãode controvérsias no âmbito do Gatt, que foram endossadas pela comunidade internacional, na esperança de que a maior juridicidade do sistema viesse a estabelecer a primazia do Direito no comércio internacional. [13]
4.6. Mesmo com o novo sistema de resolução de disputas bastante aperfeiçoado com a criação da OMC, os EUA não abandonaram suas práticas unilaterais, ilegais frente ao Direito Internacional. De acordo com um estudo preparado pela U.S National Association of Manufacturers [14] , somente no período de quatro anos entre 1993 e 1996, mais de 61 leis e atos administrativos diferentes autorizando sanções unilaterais foram promulgadas nos EUA, tendo como alvo 35 países, entre eles a Argentina, o Brasil, o Canadá e o México, justamente as maiores economias da proposta Alca.
4.7. Há outros instrumentos no arsenal unilateral dos EUA que permitem a imposição de sanções econômicas incompatíveis com o Direito Internacional, entre os quais a lei de poderes internacionais de emergência econômica de 1977 [15] ; a lei de comerciar com o inimigo de 1917 [16]; a lei de assistência ao exterior de 1961 [17]; a lei de controle de exportação de armas de 1968; a lei de energia atômica de 1954 [18]; e a lei de adesão à Organização das Nações Unidas de 1945.5.1. Ao contrário de Canadá e México, que dependem em aproximadamente 70% e 80%, respectivamente, de seu comércio externo com os EUA, o Brasil tem uma pauta altamente diversificada, com cerca de 24% com a União Européia; 23% com os países membros da Aladi e 23% com os países do Nafta. O Brasil tem uma população altamente diversificada, com sólidos laços étnicos e culturais na Europa, África e Oriente, e vive um momento de consolidação de sua democracia, que envolve, dentre outras iniciativas legislativas, a modificação do modelo econômico fechado posto em prática durante a ditadura militar. As empresas brasileiras, por sua vez, têm que operar com dois referenciais, orientando-se em busca de maior competitividade necessária pela dramática abertura da economia que implicou na redução das tarifas médias de 52% para 14% na década de 90, porém sofrendo ainda as limitações de uma estrutura legislativa onerosa, herdada do regime anterior, denomidada de “custo Brasil”.
5.2. Do ponto de vista externo, o país tem presentemente a enorme tarefa de consolidar e aprofundar o Mercosul, um exercício que comporta um grande desafio, tendo em vista condições institucionais semelhantes existentes na Argentina, Paraguai e Uruguai. Mais ainda, o ajuste das estruturas legislativas do Brasil aos dispositivos dos Tratados de Marraqueche demandará um enorme esforço se levarmos em consideração que deverá ser feito em conjunto com as leis complementares necessárias à regulamentação da Constituição de 88 e reformas econômicas, sociais e administrativas.
5.3. Ainda que a iniciativa da Alca fosse um bom negócio, seu cronograma para criação no ano 2005 seria altamente inoportuno. Ocorre que, como concebida, uma Alca formatada nos moldes do Nafta traria enormes riscos para os setores agrícola, industrial e de serviços das economias do Mercosul. Na área agrícola, os subsídios praticados pelos EUA e pelo Canadá eliminariam os respectivos setores em todos os países do Mercosul. Na área de serviços, os sistemas de quotas para a livre movimentação de prestadores de serviços impediria a competitividade e economia de escala dos prestadores de serviços do Mercosul. Os sistemas financeiros e de mercado de capitais transfeririam-se para os EUA. Na área industrial, as empresas dependeriam dos fornecedores norte-americanos, protegidos pelas regras de origem que afastariam os fornecedores de terceiros países. Em suma, nada a ganhar e tudo a perder.
5.4. Do ponto de vista estritamente jurídico, todo o esforço feito até agora é comprometido pela falta de autorização fast-track do governo norte-americano. Todavia, ainda que tal autorização venha em um futuro próximo, qualquer negociação ficaria irremediável e completamente prejudicada sem uma revisão da legislação unilateral dos EUA, incompatível com os critérios mínimos de juridicidade internacional. Como a situação se apresenta hoje, sob a perspectiva legal, mais vale ao Brasil concentrar seus esforços em aprofundar o tratamento jurídico dentro do regime multilateral da OMC.
Advogado admitido no Brasil, Inglaterra e Gales e Portugal. Formou-se em direito pela PUC-SP em 1975. Árbitro do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade) e da OMC (Organização Mundial do Comércio), e professor de direito do comércio internacional na pós-graduação da Universidade Cândido Mendes (RJ).